terça-feira, janeiro 27, 2015

Strindberg + Ullmann + Chastain (1/2)

A peça Miss Julie, símbolo do naturalismo teatral, reaparece em cinema através de uma realização da norueguesa Liv Ullmann, com uma composição excepcional de Jessica Chastain — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Janeiro), com o título 'Liv Ullmann recupera texto “maldito” de Strindberg'.

A descoberta de um filme como Miss Julie, realizado pela norueguesa Liv Ullmann, coloca-nos em contacto com uma frondosa herança teatral. De facto, a adaptação da peça homónima do sueco August Strindberg (1849-1912) actualiza as perturbantes intensidades de um texto que todas as histórias de arte reconhecem como fundamental para o desenvolvimento do teatro no séc. XX.
No plano meramente factual, estamos perante uma situação que começa por se apresentar numa desarmante simplicidade. Quase tudo acontece na grande cozinha da propriedade de um aristocrata irlandês. Em cena está um jogo perverso de ambiguidades e assombramentos: Julie, a filha do proprietário, seduz o criado Jean, enquanto Christine, uma criada, noiva de Jean, vai sendo reduzida à condição de espectadora acidental...
August Strindberg
A peça é muitas vezes interpretada como um reflexo das convulsões da vida conjugal do autor. Quando escreveu Miss Julie, em 1888, Strindberg estava à beira do seu primeiro divórcio (viria a casar-se mais duas vezes), de alguma maneira reflectindo os enigmas de uma condição feminina que ele via marcada pelo estigma das hierarquias sociais — a esse propósito, convém lembrar que Siri von Essen, primeira mulher de Strindberg, era uma actriz de origens aristocratas, sendo ele filho de uma criada.
Seja como for, a peça inscreveu-se na história das formas teatrais como um triunfo pleno do naturalismo, ilustrando a ligação que Strindberg mantinha com as ideias do francês Émile Zola (cujo manifesto em defesa do “naturalismo no teatro” fora redigido em 1881). No célebre prefácio a Miss Julie, o autor define assim o tratamento das relações que coloca em cena: “Sendo figuras modernas, a viver um tempo de transição, sem qualquer dúvida mais agitado e delirante que o período anterior, as minhas personagens vacilam, desintegram-se, são uma mistura do velho e do novo...”
Foi a própria Liv Ullmann a assinar a adaptação de Miss Julie para cinema, transferindo a acção da Suécia para a Irlanda. Porventura chocante para alguns puristas, a mudança parece corresponder apenas à necessidade de satisfazer a lógica de uma produção falada em inglês (resultante da colaboração de entidades norueguesas, inglesas, francesas e irlandesas, com distribuição internacional americana) — na prática, o filme preserva o mais possível o texto original e a organização interna da peça.
Aliás, Miss Julie resulta do trabalho de uma equipa em que se cruzam muitas nacionalidades. Julie é interpretada pela americana Jessica Chastain, por certo um dos talentos mais versáteis do cinema contemporâneo — vimo-la, em 2014, em Interstellar, de Christopher Nolan, e O Desaparecimento de Eleanor Rigby, de Ned Benson, integrando também o elenco de Um Ano Muito Violento, de J. C. Chandor, filme que, segundo alguns analistas americanos, lhe deverá trazer mais uma nomeação para um Óscar de interpretação [nomeação não confirmada; estreia portuguesa: 5 de Fevereiro]. As personagens de Jean e Christine estão entregues, respectivamente, a um irlandês, Colin Farrell, e uma inglesa, Samantha Morton. No capítulo técnico, a direcção fotográfica pertence ao russo Mikhail Krichman, colaborador regular de Andrey Zvyagintsev (O Regresso, Elena), enquanto a montagem tem assinatura do polaco Michal Leszczylowski, que em 1986 trabalhou no derradeiro filme de Andrey Tarkovski (O Sacrifício).
As convulsões vividas por Julie e Jean — aliadas a uma pulsão suicida que, lentamente, se vai insinuando —, conferem a Miss Julie um poder de perturbação que não se dissipou. A esse propósito, convém não esquecer que o texto de Strindberg foi durante longos anos considerado “maldito”: só se estreou em Londres em 1935, tendo permanecido inédito nos palcos de Nova Iorque até 1956.
Para Liv Ullmann, a abordagem de Miss Julie envolve também modelos de representação que, directa ou indirectamente, a reaproximam da filmografia do mestre sueco Ingmar Bergman (1918-2007), cineasta que nunca foi estranho às formas do universo teatral. Em boa verdade, desde A Máscara (1966) até Saraband (2003), ela foi uma das figuras emblemáticas do universo bergmaniano, tendo também dirigido um filme, Infidelidade (2000), escrito pelo próprio Bergman. Curiosamente, foi um Miss Julie de produção sueca que desempenhou um papel decisivo no conhecimento internacional da peça de Strindberg — dirigido por Alf Sjöberg, o filme arrebatou o Grande Prémio do Festival de Cannes de 1951.