sexta-feira, janeiro 30, 2015

Cinema e Holocausto (1/2)

A Segunda Guerra Mundial terminou há 70 anos: o cinema continua a ser uma paisagem fundamental para lidar com as suas memórias e, em particular, com as imagens dos campos de concentração construídos pelos nazis — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Janeiro), com o título 'Três filmes para repensar as memórias do Holocausto'.

Tendo o cinema um papel vital na nossa relação com os acontecimentos mais trágicos do séc. XX, eis um acontecimento exemplar: o lançamento simultâneo de três filmes sobre a Solução Final montada pela máquina de guerra nazi [a 20 de Janeiro de 1942, na Conferência de Wannsee]. Organizado pela distribuidora Midas Filmes, o evento enquadra-se no ano em que se comemoram os 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, assinalando, em particular, o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto (27 Janeiro), promovido pelas Nações Unidas.
Embora genericamente ligados aos modelos do documentário, estes três filmes — O Último dos Injustos, Claude Lanzmann, A Noite Cairá, de André Singer, e O Homem Decente, de Vanessa Lapa — surgem num contexto em que a revisitação de temas e histórias do segundo conflito mundial voltou a adquirir um lugar importante na dinâmica das mais diversas cinematografias. O novo filme dirigido por Angelina Jolie, Invencível, aí está como um exemplo esclarecedor. The Monuments Men – Os Caçadores de Tesouros, interpretado e dirigido por George Clooney, poderá ser outro caso significativo, a par de Lore, de Cate Shortland, ou As Flores da Guerra, de Zhang Yimou. Para além das suas diferentes raízes culturais (e dos contrastes dos respectivos contextos de produção), todos decorrem de uma mesma vontade de superar as regras mais tradicionais do “filme-de-guerra”.
Entre as novidades, A Noite Cairá, de André Singer, envolve imagens de perturbante intensidade, provenientes do trabalho dos operadores cinematográficos dos aliados que filmaram a libertação de vários campos de concentração, incluindo Bergen-Belsen e Auschwitz. Na altura, apesar de tratadas pela equipa do produtor Sidney Bernstein (que chegou a ter Alfred Hitchcock como supervisor de montagem), tais imagens acabariam por não ser divulgadas, já que o receio de criar um efeito colectivo de culpa fez prevalecer a ideia de que era prioritário garantir a colaboração do povo alemão para o esforço de reconstrução do pós-guerra.
Há algo de semelhante no filme de Claude Lanzmann, O Último dos Injustos (estreado, extra-competição, no Festival de Cannes de 2013). Com uma importante diferença conceptual que, aliás, já marcava Shoah (1985) em que o realizador reuniu uma monumental galeria de testemunhos sobre o Holocausto. De facto, ele não trabalha a partir de imagens de arquivo, mas sim de declarações recolhidas junto de pessoas que, de uma maneira ou de outra, viveram esse processo histórico. Assim, Lanzmann recupera uma entrevista realizada em 1975 com Benjamin Murmelstein, último presidente do Conselho Judeu do gueto de Theresienstadt (a “cidade” edificada por Adolf Hitler para tentar mascarar a agressão que estava a ser perpetrada contra o povo judeu). Combinando os diálogos com Murmelstein e o retorno, em 2012, aos lugares onde existiram os campos de concentração, O Último dos Injustos é, de uma só vez, uma antologia de memórias e uma problematização das suas condições práticas, narrativas e simbólicas.
Mais tradicional na sua estrutura, o terceiro filme em estreia — O Homem Decente, de Vanessa Lapa — faz o retrato de um dos cúmplices directos de Hitler, Heinrich Himmler, principal arquitecto do Holocausto. Com a particularidade de, neste caso, as palavras em off provirem de documentos (cartas, diários, etc.) encontrados, em 1945, na casa do próprio Himmler. A exibição destes três filmes é acompanhada da reposição, em cópia digital restaurada, de um dos primeiros títulos a encenar a ameaça hitleriana: O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin.