domingo, agosto 31, 2014

"Sin City": BD + cinema (1/2)

Frank Miller volta a adaptar o seu universo de Sin City ao cinema, de novo com a colaboração de Robert Rodriguez na realização — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Agosto), com o título 'Frank Miller reinventa o seu mundo assombrado'.

Para o melhor e para o pior, as aventuras cinematográficas do Verão têm sido, ao longo dos últimos anos, dominadas por figuras de super-heróis e aventuras mais ou menos galácticas. Frank Miller é uma das excepções, já que continua a fazer um cinema cujas raízes estão nas suas próprias bandas desenhadas, obsessivamente concebidas a preto e branco: Sin City: Mulher Fatal aí está a confirmar a sua fidelidade a um universo em que as memórias nostálgicas dos clássicos filmes “noir”, dominados por figuras como Humphrey Bogart ou James Cagney, se transformam agora num assombramento de violência física e cepticismo moral.
O título é revelador. Há uma “mulher fatal”, Ava Lord (interpretada pela francesa Eva Green), que teve uma relação com Dwight McCarthy (Josh Brolin), figura da noite que, na sua actividade de detective privado, tenta vencer os fantasmas da sua dependência do álcool. Agora casada com o magnate Damian Lord (Martin Csokas), Ava vai reeentrar na vida de Dwight, obrigando-o a enfrentar uma série de situações em que a simples possibilidade de sobrevivência é cada vez mais ténue...
Frank Miller
A história de Ava/Dwight é apenas uma das linhas narrativas do filme, já que Miller concebeu Sin City: Mulher Fatal como uma encruzilhada de várias histórias que, de uma maneira ou de outra, passam sempre pelo bar onde dança Nancy Callahan (Jessica Alba). Daí um puzzle de personagens que inclui o inquietante Marv (Mickey Rourke), um marginal de força descomunal, Johnny (Joseph Gordon Levitt), um jogador de cartas que desafia o poder do senador Roarke (Powers Booth), e ainda Gail (Rosario Dawson), líder de uma pequeno tribo feminina que funciona como vigilante das noites da grande metrópole. Em pequenos papéis, surgem ainda Bruce Willis e Lady Gaga.
Tudo isto é encenado como um universo em que o artifício dos ambientes se combina com a angústia existencial das personagens. Dominam as componentes emblemáticas da BD de Miller, a começar pelo muito contrastado preto e branco — devedor dos ambientes expressionistas dos policiais das décadas de 1930/40 —, apenas aqui e ali contaminado pela emergência de alguma cor (por exemplo, os lábios vermelhos da personagem de Eva Green).
Sin City: Mulher Fatal é a segunda adaptação desta série de livros de Miller. Tal como na primeira, Sin City: Cidade do Pecado (2005), ele partilha a realização com Robert Rodriguez, cineasta revelado com o lendário El Mariachi (1992), símbolo da mais austera produção independente, que depois dirigiu, por exemplo, Aberto Até de Madrugada (1996) e Planeta Terror (2007). A solo, entre os dois filmes, Miller dirigiu The Spirit (2008), filme algo semelhante no tratamento visual, embora baseado numa obra de Will Eisner.

O último dia do Museu do Brinquedo
na sua casa em Sintra


Fecha hoje as portas o Museu do Brinquedo, que durante anos a fio habitou um espaço no centro de Sintra, a dois passos do Palácio da Vila. O museu tem uma vasta coleção que cruza os tempos, juntando algumas peças made in Portugal a muitos outros brinquedos de outras paragens. Carrinhos, comboios, aviões, peluches, bonecas, soldadinhos, jogos, casinhas de brincar... São cerca de 60 mil peças reunidas ao longo de 50 anos pelo colecionador João Arbués Moreira. Peças que procuram nova casa. E com Lisboa na rota das atenções do turismo, não haverá lugar que dê nova casa a estes brinquedos?... E ao que parece já há ideias em discussão, para uma eventual reabertura em 2016.


Além da nota do encerramento do museu ficam aqui imagens de um cortejo Nambam que integra a coleção. As figuras – assim como a sua designação – aludem aos primeiros tempos da relação dos portugueses com o Japão. O cortejo mostra uma série de figuras que se dirigem para a Casa da Companhia de Jesus, lideradas pelo capitão, depois dele seguindo mercadores, mas também jesuítas (vestidos de negro) e franciscanos (de castanho claro).

Nos 20 anos de 'Dummy' (parte 3)


Lançado em finais de agosto de 1994 o álbum de estreia dos Portishead é hoje um disco de absoluta referência quando se conta a história dos anos 90. Este texto é parte de um artigo originalmente publicado no suplemento Q. do DN, com o título "Dummy: um clássico do nosso tempo".

Barrow aprendeu, impressionou e pouco depois era convidado a colaborar em Homebrew, de Neneh Cherry. Entre os teclados começou a descobrir caminhos... As ideias foram ganhando forma contando com vários colaboradores, entre os quais Helen White (que pouco depois gravaria com os Alpha) e Beth Gibbons, que tinha conhecido num programa estatal de criação de empregos algum tempo antes. Geoff mandou-lhe um fundo instrumental, ela respondeu gravando a voz que o impressionou não apenas pelas suas qualidades tímbricas e interpretativas, mas pelas palavras que usava...

Beth (n. 1965) vinha de uma comunidade rural relativamente isolada, entre Bristol e Bath. Viu os amigos a partir para a universidade e foi ficando por ali. Teve primeiras experiências em bandas locais e trabalhou com Paul Webb (que fora baixista dos Talk Talk) no projeto .O.Rang. Não deixa de ser curiosa esta última ligação, correspondendo os últimos discos dos Talk Talk a um espaço de busca de uma certa experimentação textural que define eventuais pontos de afinidade com a música dos Portishead.

O guitarrista Adrien Utley (n. 1957) – para quem a descoberta do álbum Low End Theory dos A Tribe Called Quest havia tido um efeito de revelação – estava por ali, entre as sessões, e entrou a bordo do projeto depois de lhe ser pedida uma parte para guitarra em Sour Times. Passa então a coassinar não apenas a produção como a própria escrita.

David McDonald, que assegurou o trabalho de engenharia de som em Dummy, recorda sessões iniciais de escuta de discos em estúdio, nos quais Geoff procurava elementos que samplava (7), ali encontrando pedaços de matéria sonora para depois moldar. A evolução dos trabalhos – e a tomada de consciência de processos jurídicos que afetaram, entre outros, discos dos De La Soul ou Digable Planets – levou o grupo a levar uma série de músicos a estúdio. De algumas dessas sessões nasceriam loops próprios que usariam nas canções, ao mesmo tempo surgindo ali o que seria, depois, a banda de palco que os acompanharia nos concertos (8).

O processo de trabalho partia habitualmente de uma primeira etapa na qual, em estúdio, eram criados os sons que, depois de samplados, ordenados e alguns deles transformados em loops, definiam a base. Instrumentação adicional era acrescentada depois. E só no fim a gravação era entregue a Beth para que esta pensasse na letra e vocalização. O trabalho era ponderado e discutido coletivamente. E com um objetivo claro: fazer canções.

O carácter das canções, dominado por tons menores e ritmos suaves, traduz, segundo defende R.J. Wheaton, “não um statement artístico deliberado, mas antes uma expressão natural das influências e inclinações da banda" (9). Ou, como Utley descreveria numa entrevista, “sempre bandas sonoras, sempre tons menores, ligeiramente atonal, com mutações e pelo lado triste das coisas”. Barrow vincaria mesmo um profundo desconforto perante a música mais ligeira: “Gosto de hip hop mais assombrado. E quando estava à procura de samples estava sempre em busca de algo que tivesse um conteúdo emocional estranho, algo que desencadeasse uma emoção, um tema ou atmosfera.” (10)

O primeiro aperitivo para o álbum surgiu em junho de 1994 com Numb, single cuja capa apresentava um fotograma do filme To Kill a Dead Man, de Alexander Hemming (11), como aconteceria depois com o álbum e os restantes singles que dele seriam ainda extraídos (Sour Times e Glory Box).

No final desse ano o disco foi eleito álbum do ano em vários jornais e revistas um pouco por todo o lado. E no ano seguinte sagrou-se vencedor do Mercury Prize, a mais importante distinção da indústria discográfica britânica. Por essa altura as vendas de Dummy à escala mundial tinham atingido os 850 mil exemplares. Em 2008, quando o grupo regressa de um longo hiato com o álbum Third, esse valor tinha ascendido ao patamar dos 3,6 milhões. Dummy tinha-se transformado num clássico.

(7) in Dummy, de R.J. Wheaton (Continuum Books, 2011), pág. 70.
(8) idem, págs. 72 e 73.
(9) idem, pág. 85.
(10) ibidem
(11) O filme foi expressamente criado para acompanhar o lançamento do álbum Dummy e surge como extra no DVD Roseland NYC 1992.

Bergman x 17 (10)

O SILÊNCIO (1963)
Grande acontecimento em DVD, depois da exibição em Lisboa e Porto (e mais algumas cidades): a edição de 17 filmes de Ingmar Bergman (1918-2007), a maior parte em cópias restauradas — razões de sobra para rever algumas imagens emblemáticas da filmografia do mestre sueco.

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Encerrando a trilogia "Deus e o Homem" — depois de Em Busca da Verdade (1961) e Luz de Inverno (1963) —, apetece dizer que O Silêncio é também o filme em que a divindade, definitivamente, já não se exprime, ao mesmo tempo que os homens definem um território volátil, dramaticamente carente de sentido. Aliás, tal volatilidade deverá ser tomada à letra, numa espécie de apagamento dos géneros (mas não da pulsão sexual), já que tudo se passa a partir da experiência de duas irmãs (Ingrid Thulin e Gunnel Lindblom) a viajar num país tanto mais inquietante quanto, além dos sinais de guerra civil que parecem emergir nas suas ruas, a respectiva língua é, para elas, completamente indecifrável. A criança que as acompanha (Jörgen Lindström, na altura com 11/12 anos; surgirá em 1966 na abertura de A Máscara) existe como uma ambígua emanação carnal do desentendimento dos sexos, de tal modo que se pode dizer que Bergman lhe atribui uma função exclusivamente cinematográfica — ao deambular pelos corredores de um hotel labiríntico, povoado de figuras mais ou menos circenses, o sereno Johan comporta-se como uma câmara no interior do próprio filme, contemplando a desagregação simbólica do mundo dos adultos. Se Bergman é o cineasta da incomunicabilidade, O Silêncio é a ilustração mais radical do seu desencanto existencial.

sábado, agosto 30, 2014

Bergman x 17 (agora em DVD)

PERSONA (1966)
Os 17 títulos de Ingmar Bergman que a Leopardo Filmes repôs em sala estão já a ser lançados no mercado do DVD — é um grande acontecimento que duplica a (re)descoberta de uma importante fatia de uma obra genial.
As edições, em vários lotes, irão prolongar-se até final do ano. Para já, surgiram Morangos Silvestres (1957), uma viagem ao labirinto da memória e do envelhecimento, e Persona/A Máscara (1966), seguramente uma das obras essenciais para compreender a modernidade cinematográfica, em particular na sua reconversão das relações entre corpo e imagem, palavra e silêncio. Sem esquecer, claro, que a vitalidade de Bergman não se esgota na época em que cada um dos seus filmes foi produzido, seduzindo-nos e questionando-nos, aqui e agora [trailers ingleses de ambos os filmes].



sexta-feira, agosto 29, 2014

O realismo segundo Ken Loach (2/2)

Com O Salão de Jimmy, Ken Loach prolonga a saga realista do seu cinema, evocando a Irlanda entre os dois conflitos mundiais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Agosto), com o título 'Impasses do realismo'.

[ 1 ]

Sou dos que pensam que o cinema de Ken Loach nunca ganhou em aventurar-se nas chamadas “reconstituições” históricas. O filme com que venceu o Festival de Cannes — Brisa de Mudança (2006) — parece-me mesmo um dos exemplos mais académicos da sua trajectória. Há algo de semelhante em O Salão de Jimmy, quer dizer, uma espécie de polimento “formal” que aproxima a evocação do militante comunista irlandês James Gralton (1886-1945) da lógica determinista de muitos produtos de raiz televisiva.
Claro que Loach não perdeu as suas qualidades de encenação e, pelo menos, as cenas de dança (no salão a que o título se refere) possuem a energia física e emocional que distingue um genuíno cineasta; além do mais, é sempre surpreendente observar a performance de um tão vasto lote de actores, impecáveis mesmo quando a sua função é necessariamente breve e circunstancial.
O certo é que O Salão de Jimmy nunca consegue consubstanciar aquilo que continua a ser o horizonte formal do labor de Loach: uma vibração à flor de pele que, de uma maneira ou de outra, decorre de um elaborado gosto documental. Penso, por exemplo, em O Meu Nome É Joe (1998), centrado num operário com a existência à deriva, e creio que as diferenças são sensíveis. E penso, sobretudo, na perturbante intensidade de Vida em Família (1971), um verdadeiro clássico do realismo que, agora, surge reduzido a um método apenas demonstrativo.

As criaturas da noite de Traer Scott

Americana, com trabalhos publicados em revistas como National Geographic, Life e Vogue, Traer Scott é uma notável fotógrafa de animais: cães, cavalos e, agora, criaturas da noite. A expressão serve de subtítulo ao seu novo livro, Nocturne, uma impressionante colecção de 85 retratos de quatro dezenas de espécies — dir-se-ia uma antologia dos mais discretos aristocratas, posando, num fundo negro, para a eternidade. Podemos ver alguns deles no seu site, ou na notícia publicada em FeatureShoot.

Uma canção para o verão (2014.17)


Já com o mês de agosto na sua reta final, recuperamos hoje uma das canções mais célebres da obra dos Prefab Sprout. The King Of Rock'N'Roll surgiu originalmente no alinhamento do álbum de 1988 From Langley Park To Memphis e teve depois edição em single poucas semanas após a edição do álbum.

Com produção assinada por Thomas Dolby, esta canção representou o maior sucesso do grupo no seu mercado natal (o britânico) e serviu de banda sonora a um teledisco invulgar no qual vemos o grupo em volta de uma piscina, entre sapos que servem bebidas e cachorros quentes que dançam...



O grupo sempre foi essencialmente o veículo para a apresentação das canções de Paddy MacAloon. O seu mais recente disco, Crimson/Red, foi editado em 2013.

Nos 20 anos de 'Dummy' (parte 2)

Lançado em finais de agosto de 1994 o álbum de estreia dos Portishead é hoje um disco de absoluta referência quando se conta a história dos anos 90. Este texto é parte de um artigo originalmente publicado no suplemento Q. do DN, com o título "Dummy: um clássico do nosso tempo".

É raro ver o álbum de estreia dos Portishead ser referido sem que se fale de Bristol, o lugar que o viu nascer. Portishead é, de resto, o nome de uma pequena povoação costeira – perto da foz do canal de Bristol – onde Geoff Barrow vivera na adolescência. “Com o seu passeio panorâmico à beira-mar, em frente à lama cinzenta e água opaca e poluída do canal, é um lugar estranho” (3), diz Phil Johnson, que chama como termo de comparação a memória de Eraserhead, de David Lynch.

Bristol é uma cidade costeira com uma história pop que passava pela memória de grupos que tinham já sabido cruzar fronteiras (como o Pop Group ou os Rip Rig + Panic) e também pela solidez local de uma cultura reggae que se deve a um relacionamento com a Jamaica que vem de outros séculos. Deste caldeirão emergiriam primeiro os coletivos Smith & Mighty e Wild Bunch, logo depois os Massive Attack e, mais adiante, Tricky, os Portishead ou Carlton. A ideia de uma eventual “cena de Bristol”, de que muito se falou nos anos 90, tem defensores e detratores. Phil Johnson explica no seu livro que “o catálogo de clubes, de lojas de roupa e de discos e bares” que encontrara em muitos guias de Bristol que surgiram na imprensa em meados dos anos 90 “tendia a não ser muito diferente do que se via em guias semelhantes para cidades como Nottingham ou Sheffield”. O livro nota contudo a realidade da presença de música africana e caribenha no código genético de uma cidade na qual “muitos dos monumentos e nomes de ruas lembram o tráfico de escravos”. Referências que, sublinha, não sugerem necessariamente que escravatura e música em Bristol tenham uma ligação inevitável, mas as ressonâncias históricas de uma coexistência de povos de várias etnias terá definido características distintivas não apenas na história da cidade – e ficaram célebres os motins de 1980 – como na sua produção artística.

O álbum de estreia dos Massive Attack, Blue Lines (1991), pode ser visto como uma peça fulcral no lançamento de algumas das grandes linhas e descendências que emergiram nos anos 90. É, de resto, o momento que nos apresenta discograficamente não apenas Tricky como Geoff Barrow (que trabalhou no estúdio durante as gravações, ainda como aprendiz). E também o instante em que a expressão “trip hop(4) entrou no vocabulário da cultura pop.

Geoff Barrow (n. 1971) tinha visto os estudos serem dificultados pela sua dislexia. E o facto de ser daltónico impediu-o de seguir uma desejada carreira como designer gráfico (5). Geoff gostava de música. Tentou bater à porta de vários estúdios em Bristol, obtendo resposta de um, que o aceitou no quadro de um programa de estágios. Foi ali que pouco tempo depois deu por si a trabalhar com os Massive Attack, que então gravavam Blue Lines. De certa forma os pontos de partida dos quais emergiria a música dos Portishead eram ali lançados: tempos lentos, batidas narcotizadas, vozes desencantadas. Geoff, ciente das suas limitações na altura, confessaria mais tarde que “a única coisa em que então era realmente bom era a fazer chá”. Mas a verdade é que estava atento. Muito atento. “Estava interessado em aprender sobre todo o espectro dos sons... E analisava o que fazia uma canção popular resultar, tentando mergulhar mais fundo na psicologia do som.” (6)

(3) in Straight Outta Bristol, de Phil Johnson Coronet, 1997), pág. 151.
(4) Trip hop – Expressão usada pela imprensa nos anos 90 para definir uma derivação eletrónica – nascida no Reino Unido e com evidente presença em Bristol – com características mais próximas da música ambiental de elementos com antecedentes no hip hop, dub, r&B e house. 
(5) in Dummy, de R.J. Wheaton (Continuum Books, 2011), pág. 37.
(6) idem, pág. 40.

Bob Dylan lança "todas" as 'Basement Tapes'


O volume 11 da 'Bootleg Series' de Bob Dylan vai apresentar, a 4 de novembro, numa caixa com seis discos, a totalidade das gravações "aproveitáveis" das míticas sessões registadas em 1967 por Bob Dylan com os elementos dos The Band. Foi a partir de uma seleção destas gravações que, em 1975, surgiria o álbum The Basement Tapes.

Além da versão em seis CD, haverá uma outra, de apenas dois discos, com uma seleção desta "integral". Será também editada uma versão em vinil triplo.

Podem consultar aqui o alinhamento completo desta edição.

Para ler: Festival de Veneza 2014
(três filmes a ter em conta)


Vale a pena acompanhar o que se vai vendo na edição deste ano do Festival de Veneza. Através do The Guardian podemos ler críticas aos filmes novos de Joshua Oppenheimer (o autor de O Acto de Matar, que regressa assim à Indonésia) e Alejandro González Iñarritu e a estreia de Guy Myhill.

Podem aqui ler sobre:
'The Look of Silence', de Joshua Oppenheimer 
'Birdman', de Alejandro González Iñarritu
'The Goob', de Guy Myhill

"Ramones - o Filme" por Scorsese

A notícia surgiu em todo o lado [Rolling Stone]: está em marcha a produção de um filme sobre os Ramones e quem o vai realizar será... Martin Scorsese! Não há pormenores, mas sabe-se que não apenas o filme, mas também um documentário e diversas edições em disco e livro, tudo está ligado ao projecto de celebração dos quarenta anos da lendária banda punk, tomando como referência a data da edição do primeiro álbum, Ramones (1976) — para já, aqui ficam memórias de I Wanna Be Sedated, do álbum Road to Ruin (1978).


>>> Site oficial dos Ramones.

quinta-feira, agosto 28, 2014

Manoel de Oliveira — um filme em Veneza

Luís Miguel Cintra (Camões), Diogo Dória (Teixeira de Pascoaes),
Ricardo Trêpa ('Dom Quixote') e Mário Barroso (Camilo Castelo Branco)
A apresentação de O Velho do Restelo, novo filme de Manoel de Oliveira, no Festival de Veneza é um acontecimento que merece ser sublinhado — este artigo surgiu integrado num dossier de apresentação da 71ª edição do certame, publicado no Diário de Notícias (26 Agosto).

Com a passagem de O Velho do Restelo no Festival de Veneza, pode dizer-se que Manoel de Oliveira regressa a uma casa que conhece bem — e onde há muito foi reconhecido como uma personalidade central na história do cinema. A sua primeira passagem pelo certame, em 1985, com O Sapato de Cetim, correspondeu mesmo a um momento decisivo na sua projecção internacional, quer pela ambição do projecto (a adaptação da peça homónima de Paul Claudel), quer pela própria internacionalização da respectiva produção (em especial através da relação com entidades francesas).
Depois disso, Oliveira surgiu mais seis vezes no festival, com A Divina Comédia (1991), Party (1996), Palavra e Utopia (2000), Porto da Minha Infância (2001), Um Filme Falado (2003) e Espelho Mágico (2005). Com eles conseguiu várias distinções, incluindo um prémio especial do júri para A Divina Comédia e o prémio da UNESCO para Porto da Minha Infância. Em 2004, esteve também em Veneza, nesse caso para receber a sua mais prestigiada distinção honorária: um Leão de Ouro pela carreira.
O Velho do Restelo é uma curta-metragem de apenas 20 minutos, mas não se pode dizer que a sua “brevidade” a coloque numa qualquer zona secundária da filmografia de Oliveira. Aliás, ao longo das décadas, podemos citar vários exemplos do seu trabalho — por exemplo, A Caça (1964) ou o sketch que dirigiu para o filme colectivo Cada um o seu Cinema (2007) — elucidativos da agilidade, e também do sentido experimental, com que o cineasta tem explorado os pequenos formatos.
Em cena estão nada mais nada menos que quatro vultos da história da cultura e, em particular, da literatura. Um deles é uma personagem de ficção: o Dom Quixote, de Cervantes; depois temos Luís de Camões e ainda os escritores Teixeira de Pascoaes e Camilo Castelo Branco. Até mesmo pelos actores que os interpretam — respectivamente, Ricardo Trêpa, Luís Miguel Cintra, Diogo Dória e Mário Barroso —, pode dizer-se que Oliveira se move na intimidade das questões mais fundas do seu universo narrativo, em última instância questionando a identidade de Portugal e o nosso dramático “ser ou não ser”. A referência ao “Velho do Restelo” decorre, afinal, de um cepticismo que vem desde a escrita camoniana.
O sentimento intimista apresenta-se, de alguma maneira, multiplicado pelas próprias referências que Oliveira convoca, integrando fragmentos de outros filmes. A produção soviética Dom Quixote (1957), de Grigori Kozintsev, é uma dessas referências, mas as citações são, no essencial, do próprio universo de Oliveira, nomeadamente de dois títulos onde ecoavam as mesmas interrogações e perplexidades: Non ou Vão Glória de Mandar (1990) e O Dia do Desespero (1992).
O Velho do Restelo integra a selecção oficial de Veneza, numa zona extra-competição em que Oliveira estará na companhia de nomes como o americano Peter Bogdanovich (She’s Funny That Way), o israelita Amos Gitai (Tsili) e o dinamarquês Lars von Trier (de quem será apresentado o “director’s cut” de Ninfomaníaca, Vols. I e II).

Uma canção para o verão (2014.16)


Hoje é dia de evocar uma canção do alinhamento de Odelay, o álbum de 1996 que levou Beck a uma noite de triunfo nos Grammys e, assim, a um estatuto de (merecido) reconhecimento entre várias gerações de músicos e outros profissionais da música nos EUA.

O disco era uma verdadeira galeria de singles potenciais e um espelho de um sentido de modernidade que soube retratar como uma série de heranças americanas se podiam expressar a caminho da viragem do milénio. Com um belíssimo teledisco urbano, recordamos hoje Devil's Haircut, um dos singles extraídos do álbum.



Já agora vale a pena lembrar que, após uma ausência dos discos, Beck regressou este ano à atividade não apenas com o brilhante Morning Phase, mas também com a materialização física do Song Reader, lançado há poucas semanas.

Sound + Vision Magazine apresenta
os discos e os filmes da rentrée
hoje pelas 18.30 na Fnac Chiado


Hoje pelas 18.30 a Fnac Chiado acolhe mais uma edição do Sound + Vision Magazine. Este mês estará em foco a agenda de lançamentos de discos e DVDs e também o plano de estreias de cinema, abrindo assim a janela às novidades da rentrée.

Haverá ainda espaço para evocar os 20 anos do lançamento de Dummy, o álbum de estreia dos Portishead e assinalar a reabertura do Cinema Ideal, em Lisboa.

Nos 20 anos de 'Dummy' (parte 1)


Lançado em finais de agosto de 1994 o álbum de estreia dos Portishead é hoje um disco de absoluta referência quando se conta a história dos anos 90. Este texto é parte de um artigo originalmente publicado no suplemento Q. do DN, com o título "Dummy: um clássico do nosso tempo".

Todos temos memórias diferentes mesmo quando falamos de um disco comum. Mark Oliver Everett, o “E” dos Eels, recorda que quando ouviu os Portishead pela primeira vez estava a guiar e teve de encostar o carro e parar para poder escutar com atenção. Já o sueco Jay Jay Johansson passou estas canções, num leitor portátil, num serão entre amigos no campismo, e com efeitos bem diferentes entre a plateia. Uns acabarem a noite assustados e deprimidos, ao passo que ele “adorou” aquela música a cem por cento. Estes são relatos de primeiros contactos com a música dos Portishead que encontramos no volume da série 33 1/3 dedicado a Dummy, de R.J. Wheaton, livro que assinala o estatuto de “clássico” do nosso tempo que hoje atribuímos ao álbum que em 1994 nos apresentou os Portishead.

O disco marcou um tempo de mudança, acentuando a diluição de fronteiras entre os terrenos indie, os da música de dança, o hip hop e a música soul. E foi também reflexo do progressivo amadurecimento de novas gerações de não músicos ou, como descreve Phil Johnson em Straight Outa Bristol, “pessoas que não tinham estudado um instrumento nem sequer tocado em bandas, de DJ a rappers que atuavam nos seus quartos frente aos espelhos”, muitos deles tendo “aprendido as suas técnicas entre festas com sound systems ou escutando os novos sons do hip hop americano que eram acolhidos não apenas na música mas também como parte de uma nova cultura de beats, atitude, arte e dança” (1).

Tal como Pet Sounds (1966) dos Beach Boys e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967) dos Beatles traduziram um ponto histórico e tornaram-se paradigmas de um avanço nas tecnologias de gravação (assinalando nesses dois casos o assumir do estúdio como, mais que apenas um espaço para gravar, uma ferramenta a explorar no processo criativo), também Dummy é um dos álbuns que representam a chegada de um novo patamar na relação das máquinas e dos sons. Uma das mais interessantes marcas da identidade da relação do disco com a tecnologia do áudio é, contudo, o assumir de ecos de marcas de vivências anteriores no corpo da música. Ou seja, os efeitos da eletricidade estática e de imperfeições que lembramos dos tempos do vinil, assim como a “sujidade” das fitas analógicas (como o hiss que lembramos do tempo das cassetes), são integrados na textura de uma música que, criada na era digital, continha assim em si as heranças de tempos que a precediam. Esta presença textural, que define sugestões de espaço e traduz uma forma de entender a nostalgia como uma força ativa da memória, toma aqui um peso tão determinante na construção de canções em que reconhecemos ainda arquiteturas rítmicas que nasceram da assimilação de ensinamentos do hip hop. A composição aceita e depura também heranças clássicas da canção e cede depois a linha da frente dos acontecimentos a uma voz desencantada e assombrada que lembra as fragilidades da humanidade que assim se expõe. A modernidade, que em Dummy conhece um dos seus marcos de afirmação na música dos anos 90, não esconde assim que há toda uma história que a precede e sem a qual este presente não seria possível. A geração espontânea, como Francesco Redi (2) já nos tinha dito no século XVII, é coisa que de facto não existe.

(1) in Straight Outta Bristol, de Phil Johnson Coronet, 1997), pág. 15
(2) Francesco Redi (1626-1697) Naturalista italiano, foi o primeiro a contestar experimentalmente a geração espontânea. É visto como o fundador da biologia experimental.

Kate Bush ao vivo: primeiras opiniões

Foto: Ken McKay/Rex Features, via Guardian 
Foi uma das notícias do ano, mas desde terça-feira é já um dos acontecimentos de 2014. O regresso aos palcos de Kate Bush apresentou um espectáculo de três horas, com intervalo, e sem canções dos quatro primeiros álbuns. Podem ler aqui algumas das primeiras opiniões.

Artigo de Alex Petridis no The Guardian para ler aqui.
Texto de Ben Ratlif, aqui, no New York Times.
E aqui o texto de Andy Gill, no The Independent.


quarta-feira, agosto 27, 2014

Blonde Redhead — o gosto do mistério

Digamos que é tão misterioso, tão misteriosamente fascinante, como a sua capa [vale a pena fazer click na imagem e ver um pouco maior]: o nono álbum de estúdio dos novaiorquinos Blonde Redhead, de seu nome Barragán, apresenta-se como uma aventura pelas regiões primitivas de algum psicadelismo, ao mesmo tempo fiel à geometria austera de um rock de genuína liberdade poética — talvez ajude a situá-los o facto de há quase vinte anos terem tido um álbum de estreia, Blonde Redhead (1995), produzido por Steve Shelley, baterista dos Sonic Youth; além do mais, este Barragán contou com a experiência de Drew Brown que já trabalhou, entre outros, com Beck, Charlotte Gainsbourg e Radiohead.
Formados pela cantora de origem japonesa Kazu Makino e pelos gémeos Simone e Amedeo Pace, os Blonde Redhead são a prova real de que a nostalgia mais genuína é também, muito provavelmente, a mais futurista — a prova: os contrastes do delicado intimismo de The One I Love.

O realismo segundo Ken Loach (1/2)

Com O Salão de Jimmy, Ken Loach prolonga a saga realista do seu cinema, evocando a Irlanda entre os dois conflitos mundiais — este entrevista, realizada do dia 24 de Maio de 2014, em Cannes, foi publicada no Diário de Notícias (22 Agosto), com o título '“Com as tecnologias digitais as pessoas concentram-se menos”'.

Nascido em 1936, Ken Loach é um prestigiado veterano do cinema britânico. Já ganhou uma Palma de Ouro em Cannes, com Brisa de Mudança (2006), e um prémio de carreira da Academia Europeia de Cinema, em 2009. Sempre marcada por questões sociais e políticas, a sua obra tem passado por temas que vão desde a gravidez juvenil (Vida em Família, 1971) até à guerra no Iraque (Route Irish, 2010). Antes de O Salão de Jimmy, dirigiu The Spirit of 45, documentário sobre a Segunda Guerra Mundial, a estrear em Setembro.
* * * * *
Para si, evocar o passado da Irlanda é também uma maneira de falar do presente?
Sem dúvida. A marginalização das visões alternativas e das próprias pessoas que falam ou agem em favor dos pobres é algo que, infelizmente, encontramos em todos os países. Actualmente, em alguns lugares, há raparigas que colocam a sua vida em perigo apenas porque querem educação.
Quando conta uma história vivida há setenta ou oitenta anos, como acontece em O Salão de Jimmy, sente que o seu trabalho como realizador é diferente?
Não há diferença. Enfim, quando se filma o passado há mais trabalho, já que é preciso criar tudo — quando queremos filmar uma acção numa rua dos nossos dias, vamos para a rua e... filmamos. Em qualquer caso, o trabalho da câmara, a direcção de actores e modo de contar a história, tudo isso é idêntico.
E nesse contexto os seus actores têm alguma margem para improvisar?
Um pouco... mas o argumento está escrito. Digamos que, um bocadinho à maneira do jazz, por vezes alguma espontaneidade é bem-vinda.
Ken Loach
Nessa perspectiva, continua a ver os seus filmes como um desenvolvimento da tradição britânica do realismo?
Creio que sim, mesmo se me parece que se trata, antes do mais, de uma tradição com raízes literárias. A observação da vida de todos os dias é algo que vem desde a Idade Média, com Chaucer, prolongando-se por autores como Shakespeare ou Dickens — e essa é, obviamente, a cultura em que cresci.
Será que há muitas diferenças de produção em relação aos tempos em que realizou filmes como Kes (1969) ou Vida em Família (1971)?
De facto, não creio que as coisas sejam assim tão diferentes. As questões básicas, quer dizer, os elementos clássicos do drama — personagens, narrativa, conflito, resolução do conflito, consequências da acção — não mudam. Há evoluções técnicas, sem dúvida, mas são factores marginais. A essência mantém-se.
Entretanto, hoje em dia, a existência dos filmes passa também pelas mais diversas formas de difusão (salas, televisão, VOD, etc.). Como avalia essa evolução?
Para dizer a verdade, sinto que não sei muito sobre isso. Detesto ver filmes na televisão, prefiro sempre os cinemas. Na sala escura, o cinema é uma experiência colectiva que envolve uma muito maior concentração — não nos vamos levantar para fazer um chá ou atender o telefone... As tecnologias digitais fizeram com que as pessoas se concentrem menos e por períodos mais curtos. Quando vemos uma coisa num aparelho nas nossas mãos, ou mesmo no ecrã de televisão, a tentação para fazer zapping é sempre muito grande. É por isso que os filmes estão cheios de explosões e dinossauros... Digamos que quem faz esses filmes pensa que, se não lançar um dinossauro contra o espectador, ele vai mudar de canal. Enfim, por todas essas diferenças, acredito que o cinema nas salas vai sobreviver.

A IMAGEM: Richard Avedon, 1995

RICHARD AVEDON
Kristen McMenamy & Nadja Auermann (Versace)
1995

Casais homossexuais — amor e fotografia

O título do livro de Sebastien Lifshitz, The Invisibles, envolve um paradoxo feliz: por um lado, trata-se de propor uma antologia de fotografias de casais homossexuais, obtidas no período 1900-1960, quer dizer, em contextos em que, pela violência legislativa ou pela repressão moral, tais casais eram impelidos, no mínimo, a algum recato nos espaços públicos; por outro lado, fossem quais fossem as barreiras de cada um desses contextos, o certo é que se fizeram muitas fotografias marcadas por formas de genuína intensidade amorosa — o subtítulo do livro assim o diz: "Vintage Portraits of Love and Pride ".
Lifshitz, que já realizara um filme homónimo sobre a mesma temática (vencedor do César de melhor documentário, referente a 2012), começou por detectar tais fotografias em mercados de objectos antigos. A pouco e pouco, foi criando uma colecção que, em última instância, o conduziu a este livro. Trata-se, afinal, de resgatar o invisível, devolvendo-lhe a liberdade de existir perante os nossos olhares, todos os nossos olhares.

>>> Cerimónia dos Césares de 2013 (Canal +): o discurso de agradecimento de Sebastien Lifshitz.


>>> Dois artigos sobre The Invisibles: The Daily Beast + The Guardian.

terça-feira, agosto 26, 2014

Interpol: o novo álbum

Já aqui tinhamos escutado All the Rage Back Home, canção de abertura do novo álbum dos Interpol, El Pintor (assinalando a sua espantosa capa). Agora é possível escutá-lo na íntegra na NPR e, em baixo, descobrir um pequeno video promocional. Depois da saída de Carlos Dengler (baixo), esta é o primeiro registo da banda com Paul Banks (voz, guitarra, baixo), Daniel Kessler (guitarra, voz) e Sam Fogarino (bateria, percussão) — ou como a ideia de um som realmente alternativo permanece viva e envolvente.

segunda-feira, agosto 25, 2014

Lucy, aliás, Scarlett Johansson (2/2)

Luc Besson continua a apostar em concretizar em França um cinema que concorra directamente com as matrizes espectaculares de Hollywood: Lucy, com Scarlett Johansson, é o produto mais recente de tal ambição — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Agosto), com o título 'Regresso ao futuro'.

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Em tempos recentes, muitos filmes têm aplicado dois “suplementos” tecnológicos — as imagens 3D e as salas IMAX — promovidos como um automático ganho espectacular. O certo é que a maioria desses filmes não possui o mais ténue conceito para sustentar a aplicação de tais recursos (recorde-se o aparatoso desastre do mais recente Godzilla), quase sempre esgotando-se em imagens mais ou menos “estonteantes”, dir-se-ia registadas por um telemóvel à deriva, e num aumento agressivo das intensidades sonoras.
Lucy, de Luc Besson, começa por ter o mérito de saber rentabilizar os recursos que aplica. O 3D nem sequer é utilizado mas, por uma vez, a grandeza física do IMAX faz todo o sentido: há nas imagens de Lucy um delirante hiper-realismo em que a intensidade maníaca do detalhe não é estranha à dimensão física em que podemos descobrir as imagens.
Estamos perante uma produção europeia de invulgar complexidade técnica que, além do mais, relembra aos mais distraídos que a evolução industrial do cinema está longe de ser um fenómeno exclusivamente made in USA. Por um feliz paradoxo, na sua singeleza filosófica, Lucy possui também as virtudes da mais primitiva “série B”. A saber: convocar referências e utopias da contemporaneidade para construir um espectáculo de celebração do próprio artifício cinematográfico.
Em 1957, em The Incredible Shrinking Man, Jack Arnold filmava um homem que, depois de atingido por radiações atómicas, ia vendo o seu corpo diminuir até dimensões microscópicas — era um espelho perturbante dos medos da época. Em Lucy, Scarlett Johansson surge como cobaia involuntária de uma droga que vai transformar o seu cérebro no mais poderoso dos computadores — é uma boa e estranha metáfora das encruzilhadas que o futuro já inscreveu no nosso presente.

Cinema Ideal: os dois primeiros filmes

E Agora? Lembra-me, a admirável viagem introspectiva de Joaquim Pinto, e A Desaparecida (1956), clássico absoluto de John Ford e da idade de ouro de Hollywood, serão os dois primeiros filmes a ser programados pelo Cinema Ideal (a partir de quinta-feira, 28 Agosto). Assim se materializa o projecto da distribuidora Midas Filmes, dirigida por Pedro Borges, de devolver à cidade e aos cinéfilos uma das salas mais lendárias de Lisboa.
Eis a primeira folha de programação oficial do novo Ideal:

CINEMA IDEAL
Rua do Loreto, 15/17 1200-241 Lisboa
Programação 28 de Agosto a 3 de Setembro de 2014

E AGORA? LEMBRA-ME
De: Joaquim Pinto
M/12
Com: Joaquim, Nuno, Jo, Deolinda, Cláudia, Nelson, Rita
Horários: 15h45, 21h15

A DESAPARECIDA (exclusivo)
De: John Ford
M/6
Com: John Wayne, Jeffrey Hunter, Natalie Wood
(versão digital restaurada)
Horários: 13h30, 19h00

The Gift em Alcobaça
(20 anos depois...)


Há 20 anos, num sótão não muito longe dali, tomavam primeiras decisões, planeavam a primeira apresentação pública (que teria lugar a 28 de setembro de 1994 no mítico Bar Ben). Duas décadas depois, com um historial discográfico reconhecido e feitos concretos somados em palcos por aí fora, a celebração - vivida na noite de ontem - tinha aquele reconfortante sabor de estar em casa, entre os seus, mas com a consciência de que há muito a sua voz foi bem para lá deste lugar. Sem ainda a marca de uma agenda oficial de comemorações, a atuação dos The Gift no terreiro em frente ao Mosteiro de Alcobaça marcou o início do assinalar dos 20 anos de vida do grupo. Foi uma noite intensa (e naturalmente emotiva), com um alinhamento como nunca antes tinham apresentado, cruzando toda a sua discografia entre o já longínquo Digital Atmosphere com que se estrearam em 1997 e o mais recente Primavera, de 2012.

A primeira canção deu o mote... Five Minutes of Everything. Mas em vez de cinco minutos foi todo um serão de memórias cruzadas com vivências mais recentes, das diferenças e afinidades entre as marcas das sonoridades de cada disco surgindo contudo um corpo sólido que traduz, já sem surpresa, uma noção de obra.

Os anos de rodagem em palco não enganam e os muitos que enchiam à pinha o espaço em frente a palco viram uma banda vocal e instrumentalmente em grande forma e acompanhada por uma equipa técnica igualmente segura, com um trabalho de som irrepreensível, que garantiu assim toda a eficácia do alinhamento de canções que sugeriram o efeito familiar do ‘best of’ (afinal celebram-se 20 anos de carreira).

Sem optar por uma arrumação cronológica, o desfile das canções galgou tempos entre saltos adiante ou para trás, espalhando o novo e o antigo numa sequência que vale a pena repetir. A escolha dos temas mais antigos destacou (e com justiça) o alinhamento do magnífico Film, de 2001, talvez o momento musicalmente mais brilhante da discografia do grupo. Sem o estatuto icónico criado pelo impacte do ineditismo de Vinyl (é importante lembrar que foi o disco que os levou a mais gente e inscreveu uma ética de trabalho diferente e eficaz no panorama pop/rock nacional) nem o fulgor dinâmico do mais recente Explode (um álbum inteligentemente talhado para uma vivência de palco), Film revelou um aperfeiçoar das demandas reveladas no álbum de 98, acentuando diálogos com electrónicas e um labor cénico onde estas partilhavam o protagonismo com as cordas. De resto, e se estamos em tempo de celebrar a obra feita – sendo certo que haverá novos passos (ler discos) mais adiante -, vale a pena pensar que terá de chegar o dia de podermos ver estas canções em palco vestidas pelo corpo de uma orquestra, “desejo” que está latente sobretudo entre os temas de Vinyl e Film.

O episódio mais emotivo da noite ficou por conta de um reencontro em palco com Ricardo Braga, elemento da formação original do grupo (mas que seguira um outro caminho depois de 1998) que regressou a cena para partilhar a já distante Laura (que talvez não se escutasse em palco desde 1997) e recordar OK, Do You Want Something Simple?, a canção que foi cartão de visita para o episódio que os levou mais alto e mais longe. A canção nasceu numa longa noite de trabalho, numa cave também não muito longe dali. Raras vezes as celebrações de memórias comportam esta carga que a geografia dá aos acontecimentos. Pelo que aconteceu ao longo de 20 anos, e pelas muitas relações com o espaço onde na noite de domingo estas canções se escutavam uma vez mais, não podia ter sido mais feliz a abertura da celebração de duas décadas de vida dos The Gift.

Richard Attenborough (1923 - 2014)

Actor, produtor e realizador, a sua actividade cobriu mais de meio século da história do cinema inglês, tendo chegado a dirigir o British Film Institute, entre 1981 e 1992: Richard Attenborough faleceu no dia 24 de Agosto — contava 90 anos.
As audiências internacionais só o terão descoberto em 1963, quando participou em A Grande Evasão, de John Sturges, um filme de guerra em tom de aventura, com um elenco que incluía Steve McQueen, James Garner, Donald Pleasance e Charles Bronson. O certo é que Attenborough era já um dos principais "actores de composição" (character actors) da produção inglesa, revelado num pequeno papel em In Which We Serve/Sangue, Suor e Lágrimas (1942), de Noel Coward e David Lean.
Brighton Rock (1947), de John Boulting, segundo Graham Greene, e Violador de Rillington (1971), de Richard Fleischer, um popular thriller sobre um "serial killer", são momentos marcantes de uma actividade criativa que, a partir de certa altura, integrou também a realização. Attenborough estreou-se a dirigir com a comédia musical sobre a Primeira Guerra Mundial Oh! What a Lovely War/Viva a Guerra! (1969), tendo realizado vários filmes biográficos: O Jovem Leão (1972), sobre a juventude de Winston Churchill; Grita Liberdade (1987), sobre o activista negro Steve Biko; Gandhi (1982), sobre o líder pacifista da Índia, consagrado com oito Oscars (incluindo melhor filme e melhor realização); e Chaplin (1992), sobre Charles Chaplin — porventura o seu trabalho mais depurado, este último valeu a Robert Downey Jr. uma nomeação para o Oscar de melhor actor.


Para os espectadores mais jovens, Attenborough será, antes do mais, o cientista empenhado em devolver os dinossauros ao planeta Terra, em Parque Jurássico (1993) e na respectiva sequela O Mundo Perdido (1997), ambos sob a direcção de Steven Spielberg. Entre os seus derradeiros trabalhos como actor, incluem-se Hamlet (1996), de Kenneth Branagh, e Elizabeth (1998), de Shekhar Kapur.

>>> Obituário na BBC.

domingo, agosto 24, 2014

Marcos Rojo "muito feliz" no Sporting

Marcos Rojo em Manchester (FOTO: CaughtOffside),
três dias depois de ter aparecido na Sporting TV,
declarando que estava "muito feliz" por permanecer no clube
A saída de Marcos Rojo do Sporting é, por certo, um sintoma revelador da lógica financeira que, hoje em dia, domina o futebol. Mas é também um caso sintomático da contaminação do espaço televisivo pelas misérias do Big Brother — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (22 Agosto), com o título 'O apocalipse de Marcos Rojo'.

Tragédia da semana, em dois tempos. Marcos Rojo aparece na Sporting TV, falando dos problemas disciplinares que protagonizou: “Estava de cabeça quente, gosto muito do clube, de toda a gente do Sporting e estou feliz no clube”. Cerca de 24 horas mais tarde, o mesmo Marcos Rojo surge na imprensa inglesa (p. ex., The Guardian, 19 de Agosto), confirmando a sua transferência para o Manchester United e classificando-a como a concretização de um “sonho”.
O monstruoso ridículo de tudo isto supera o futebol e, escusado será dizê-lo, qualquer simpatia pelo clube A, B ou C. O espaço televisivo passou a produzir “informações” deste teor (depois, mil vezes repetidas por todos os canais) sem que se reponha algum respeito pela inteligência, essa qualidade primitiva que, felizmente, não escolhe clubes nem profissões.
Há excepções, claro. Eduardo Barroso, no programa Prolongamento (TVI24), foi uma delas, referindo como lhe repugnava, no plano humano — repito a dimensão essencial: no plano humano —, ter assistido à confissão do jogador. Porque é isso que está em causa: a transformação de um episódio da vida de uma instituição, neste caso um clube de futebol, numa variação do sinistro “confessionário” do Big Brother.
Em nome da “personalização” informativa, há matrizes televisivas que todos os dias contribuem para banalizar o factor humano, celebrando a vida social como um jogo de ilusões para usar e deitar fora. Como gostam de proclamar os gestores do Big Brother a propósito dos respectivos concorrentes, podemos dizer que Marcos Rojo não foi obrigado a protagonizar tão triste cena... E depois? Desde quando o significado social e o valor simbólico das acções humanas se passou a avaliar, unilateralmente, a partir de qualquer “vontade” individual?
O que se discute é o esvaziamento de qualquer sentido de responsabilidade, a ponto de haver cidadãos que se prestam a grosserias como a que Marcos Rojo protagonizou. Se, para mais, o próprio nunca pensou no assunto, só podemos repetir as palavras de Marlon Brando em Apocalypse Now: “O horror, o horror...”.

Nirvana por Maya Beiser

Clássica ou moderna? Digamos que a arte de Maya Beiser, violoncelista americana nascida em Israel, em 1963, dispensa qualquer maniqueísmo que a alternativa possa atrair. No seu repertório, encontramos Osvaldo Golijov, Philip Glass ou Steve Reich, a par de Led Zepellin, Pink Floyd e Nirvana, tudo revisitado e reinventado através de uma atitude genuinamente experimental — dos Nirvana, precisamente, eis a sua espantosa versão de Lithium, tema incluído no seu mais recente álbum Uncovered. Em baixo, podemos ver e escutar o 'Tiny Desk Concert' de Beiser, na NPR, com dois temas: Mariel, de Golijov, e Just Ancient Loops (Mvt. 1), de Michael Harrison.



Lucy, aliás, Scarlett Johansson (1/2)

Luc Besson continua a apostar em concretizar em França um cinema que concorra directamente com as matrizes espectaculares de Hollywood: Lucy, com Scarlett Johansson, é o produto mais recente de tal ambição — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Agosto), com o título 'Scarlett Johansson à descoberta dos poderes do cérebro humano'.

Scarlett Johansson tem apenas 29 anos (completará 30 no dia 22 de Novembro), mas é um facto que já viveu várias vidas cinematográficas. Descobrimo-la, ainda adolescente, em O Encantador de Cavalos (1998), sob a direcção de Robert Redford; depois, vimo-la como musa do cinema de Woody Allen, em particular no emblemático Match Point (2005); enfim, mais recentemente, desde Os Vingadores (2012), tem integrado o elenco de vários “blockbusters” de Verão, encarnando a personagem da “Viúva Negra”.
No novo filme do francês Luc Besson, Lucy, Johansson assume a personagem de uma jovem americana a viver em Taiwan que, por causa do seu namorado, se vê envolvida com um gang de traficantes: forçada a funcionar como “mula” (transportando um saco de droga no seu abdómen), vai descobrir-se na teia de uma saga violenta, sendo alvo tanto daqueles que querem recuperar o produto como das autoridades policiais...
Nas suas peripécias mais espectaculares, o filme contém todas as componentes de um típico “thriller” de acção, por vezes citando títulos tão diversos como a trilogia Matrix (1999-2003) e as suas manipulações de imagem (não faltam os corpos a vogar no espaço) ou os ambientes exóticos de O Quinto Elemento (que o próprio Besson dirigiu, em 1997, com Bruce Willis no papel central).
Em qualquer caso, o argumento de Lucy (também da autoria de Besson) contém uma derivação insólita e perturbante. Assim, acontece que, devido a uma agressão, o produto (CPH4) que Lucy transporta no corpo se derrama, penetrando no seu sistema de circulação sanguínea. Resultado? Lucy vai adquirindo poderes inusitados, numa verdadeira aventura cerebral em que, desde a manipulação física dos outros até à antecipação do futuro, tudo parece possível.
A aposta do filme consiste em combinar as premissas científicas da sua história — simbolizadas na figura do professor Samuel Norman, interpretado por Morgan Freeman — com situações e ambientes típicos de um “filme de acção” em que se cruzam referências europeias, americanas e asiáticas. O cartaz oficial do filme resume a euforia e a tragédia da experiência de Lucy, enunciando uma sugestiva hipótese: “Uma pessoa comum usa 10% da sua capacidade cerebral. Imaginem o que poderia fazer com 100%.”
Na trajectória de Besson, quer como realizador, quer como produtor, Lucy é um dos projectos mais complexos e ambiciosos. De facto, desde a criação do seu estúdio de produção e distribuição — EuropaCorp, fundado em 1999 —, ele tem procurado gerar filmes que apliquem os recursos tecnológicos europeus, visando sempre o mercado global, como tem acontecido, por exemplo, com a série Transporter/Correio de Risco, protagonizada por Jason Statham. Ao mesmo tempo, Besson tem apoiado produções americanas de características mais autorais, como I Love You Philip Morris, de Glenn Ficarra e John Requa, com Jim Carrey, ou The Homesman, de e com Tommy Lee Jones, que no passado mês de Maio integrou a secção competitiva do Festival de Cannes.
Lucy emerge como o maior investimento de sempre da EuropaCorp, com um orçamento a rondar os 50 milhões de euros (sem considerar os gastos na promoção). Nesta perspectiva, pode dizer-se que, na sua evidente sofisticação tecnológica, o filme serve também de cartão de visita da Cité du Cinema, mega-estúdio de Saint-Denis, nos arredores de Paris. Fundado por Besson em 2012, a Cite du Cinéma está apostada em rivalizar com os maiores complexos de produção da Europa, em particular os de Berlim (Babelsberg) e Londres (Pinewood).