domingo, dezembro 21, 2014

Redescobrindo Manoel de Oliveira (2/3)

Luís Miguel Cintra, Diogo Dória, Ricardo Trêpa e Mário Barroso
A estreia de O Velho do Restelo, de Manoel de Oliveira, surgiu acompanhada de três outras curtas-metragens emblemáticas da evolução do seu autor: um programa notável para redescobrir Oliveira comemorando os seus 106 anos — este texto integrava um dossier sobre os quatro filmes, publicado no Diário de Notícias (9 Dezembro).

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Ao longo da sua obra, Manoel de Oliveira tem encenado, questionado e discutido a dimensão épica da história de Portugal. Em boa verdade, podemos dizer que a sua trajectória criativa é também uma genuína epopeia que acompanha todas as convulsões da sétima arte, desde os tempos finais do mudo até às experimentações da modernidade. À beira de completar 106 anos, Oliveira é hoje homenageado com uma condecoração atribuída pelo Estado francês, em cerimónia no Museu da Fundação de Serralves.
No dia do seu aniversário [quinta-feira, 11] será estreado O Velho do Restelo, curta-metragem cuja estreia mundial ocorreu, em Setembro, no Festival de Veneza. Nos seus concisos 19 minutos, o filme envolve, justamente, memórias cruzadas da nossa história e da história cinematográfica do próprio Oliveira.
Tudo acontece através do encontro imaginário — não num cenário fantasista, mas num aprazível banco de jardim — de quatro personalidades emblemáticas. Três delas pertencem ao património cultural português, reflectindo os dramas da nossa identidade nacional: Luís de Camões, criador do Velho do Restelo, essa figura incómoda que, no Canto IV de Os Lusíadas, se insurge contra as ilusões do povo lusitano — “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça / Desta vaidade, a quem chamamos Fama!”; Camilo Castelo Branco, autor de Amor de Perdição que, em 1979, o próprio Oliveira transformou em polémico filme e série de televisão; e Teixeira de Pascoaes, poeta que celebrou a saudade como via real de introspecção e conhecimento. A quarta personagem de O Velho do Restelo provém do mundo da ficção, mas dialoga, de igual para igual, com os que viveram uma existência concreta — é o Dom Quixote, criado por Miguel de Cervantes no começo do séc. XVII.
Oliveira está também a revisitar a sua própria obra, uma vez que, directa ou indirectamente, essas são figuras que têm pontuado e influenciado o seu trabalho. Camilo surge, nesse aspecto, como a presença mais obsessiva, figura a um tempo carnal e metafísica do universo do cineasta. Daí que Oliveira o recorde através de cenas de alguns dos seus filmes, como Francisca (1981) ou O Dia do Desespero (1992), sempre com os traços do intérprete, Mário Barroso, que volta a assumi-lo em O Velho do Restelo.
Semelhante processo de revisitação faz com que a montagem vá dando a ver fragmentos de outros títulos da filmografia do cineasta, incluindo Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990) e O Quinto Império: Ontem como Hoje (2004). Aí revemos, afinal, os restantes actores de O Velho do Restelo: Luís Miguel Cintra, Diogo Dória e Ricardo Trêpa, agora respectivamente intérpretes de Camões, Pascoaes e Dom Quixote (neste caso, evocado também através de extractos da adaptação soviética da obra de Cervantes, realizada em 1957 por Grigori Kozintsev).
Esta teia de imagens, memórias e pensamentos poderia, talvez, ser resumida por uma frase do próprio Teixeira de Pascoaes: “Não existimos mais que os nossos sonhos”. A visão de Oliveira envolve esse paradoxo, porventura essa contradição, que nasce da coabitação do que somos e fazemos com tudo aquilo que ambicionámos de forma mais ou menos sonhada. Daí que, para além das naturais diferenças interiores de um labor que se desenvolve ao longo de mais de oitenta anos, encontremos nele um continuado empenho na interrogação dos valores que, melhor ou pior, têm sustentado a nossa história de muitos séculos.
Procurando apontar algumas pistas dessa evolução, a exibição de O Velho do Restelo estará integrada num programa que inclui mais três curtas-metragens de Oliveira. Assim, será possível ver ou rever o seu primeiríssimo filme, o clássico Douro, Faina Fluvial (1931), sobre a vida ribeirinha do Porto; a cidade do Porto surge também como elemento fulcral de O Pintor e a Cidade (1956); enfim, regressa Painéis de São Vicente de Fora – Visão Poética (2010), uma encomenda da Fundação de Serralves sobre os painéis de Nuno Gonçalves.
Como o universo de Oliveira não é estranho às delícias da ironia, vale a pena referir que a sua obra, tantas vezes descrita (erradamente) como uma colecção de filmes com durações sempre superiores a três ou quatro horas, tem sido pontuada por muitos títulos como estes, de curta duração.