sexta-feira, dezembro 12, 2014

Pedro Costa redescobre Jacob Riis (1/3)

O novo e prodigioso filme de Pedro Costa, Cavalo Dinheiro, abre com uma fascinante pontuação, visual e simbólica, através de algumas fotografias de Jacob Riis — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Dezembro), com o título 'Fotos de Jacob Riis redescobertas no novo filme de Pedro Costa'.

Para além de movimentos ou modas, a história do cinema é feita de muitos cruzamentos com outras linguagens. No caso do novo filme de Pedro Costa, Cavalo Dinheiro, deparamos com uma subtil integração de fotografias feitas há mais de um século, assinadas por Jacob Riis (1849-1914).
Cavalo Dinheiro constrói-se em torno de experiências vividas e sonhadas por Ventura, personagem emblemática do universo de Pedro Costa (que já ocupava o centro dos acontecimentos em Juventude em Marcha, lançado em 2006). Natural de Cabo Verde, habitante do bairro das Fontainhas, Ventura emerge como sinal de tenacidade e resistência face a drásticas condições de vida.
Num gesto de calculado simbolismo, Pedro Costa abre o seu filme com uma série de fotografias que Riis obteve em algumas das zonas mais degradadas de Nova Iorque. São becos na zona da Mulberry Street, uma das principais vias de Manhattan (imortalizada por Francis Ford Coppola em O Padrinho, produção de 1972), famílias pobres em interiores desconfortáveis, cenas de comércio de rua... Todos aqueles que figuram nas imagens testemunham, afinal, as agruras do crescimento da grande metrópole, levando-nos a pressentir as marcas da violência desse processo (recorde-se que alguns dos seus episódios mais sangrentos foram abordados por Martin Scorsese, em 2002, em Gangs de Nova Iorque).
Personalidade de espírito reformista, Riis desempenhou um papel fundamental na abordagem política das convulsões internas do crescimento de Nova Iorque e, em particular, na defesa dos que estavam a ser empurrados para uma vivência socialmente marginal. Nascido na cidade de Ribe, na Dinamarca, em 1849, Riis foi um dos muitos europeus que procuraram melhores condições de vida do outro lado do Atlântico, ansiando pela utopia do Sonho Americano — em boa verdade, à partida, pretendia apenas consolidar a sua experiência de carpinteiro.
Ao chegar a Nova Iorque, corria o ano de 1870, Riis descobriu-se envolvido num turbilhão social que, entre muitas tensões e contradições, iria estar na base da moderna América. É por essa altura que, na sequência da Guerra Civil (1861-65), se assiste a uma gigantesca deslocação de populações para as grandes cidades, em especial Nova Iorque — calcula-se que, depois da guerra, as áreas urbanas dos EUA tenham acolhido 24 milhões de pessoas, gerando dramáticos desequilíbrios sociais.
Depois de empregos em diversos domínios, Riis acabaria por se afirmar como profissional do jornalismo, integrando a redacção do semanário News e, mais tarde, assumindo as funções de editor de sociedade no New York Tribune. O trabalho de jornalista, na raiz do seu activismo político (foi mesmo uma figura muito próxima do Presidente Theodore Roosevelt, eleito em 1901), conduziria Riis à utilização da fotografia como elemento fulcral de conhecimento e informação.
Pioneiro na utilização do flash (técnica que se estava a consolidar precisamente na segunda metade do séc. XIX), Riis deixaria como legado fundamental o seu livro How the Other Half Lives, publicado em 1890. De acordo com o título, tratava-se de dar a ver como vivia a “outra metade” dos cidadãos — para a história, ficou como um dos primeiros clássicos do foto-jornalismo.