sábado, dezembro 06, 2014

No tempo de "Boyhood" (2/2)

Boyhood, de Richard Linklater, é um caso raro de sensibilidade na abordagem do crescimento de uma personagem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Novembro), com o título 'A arte de filmar a passagem do tempo'.

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A grande diferença de Boyhood decorre, como é óbvio, da opção por um tão longo tempo de filmagem. E não se pense que as dificuldades decorrentes de tal opção foram meramente logísticas. Em boa verdade, começaram na própria estruturação jurídica do projecto. Assim, no princípio, em 2001/2002, Linklater contou com o compromisso de Coltrane (nascido em 1994) e da sua família no sentido de cumprir os 12 anos de rodagem; em todo o caso, na prática, a produção não pôde assinar um contrato com Coltrane, já que, para uma tarefa deste género, envolvendo uma prestação de serviços individual no interior da indústria cinematográfica, a lei do estado da Califórnia não permite que sejam assinados contratos por períodos superiores a sete anos (essa regra é, aliás, conhecida pela designação de “Lei de Havilland”, uma vez que na sua origem está um conflito de Olivia de Havilland com a Warner, em 1943, gerado precisamente pela vontade da actriz se libertar, ao fim de sete anos, do impedimento de assinar contratos com outros estúdios — o caso fez jurisprudência, tendo o tribunal dado razão à actriz).
Na prática, Linklater pôde reunir a sua equipa cerca de duas/três semanas por ano, convocando os actores para uma dinâmica de trabalho que, embora distante de qualquer esquematismo (auto)biográfico, apelava à possibilidade de cada um trazer contributos, factuais ou afectivos, para a construção das cenas. De tal modo que Boyhood foi, de facto, desde o primeiro momento, um work in progress, com argumento em permanente reavaliação e diálogos escritos no dia a dia da rodagem.
Os resultados possuem uma nitidez a que, à falta de melhor, apetece chamar “documental” — descobrimos miúdos e graúdos como mapas muito físicos do efeito inexorável, terno e cruel, do tempo. Mas, na sua intensidade à flor da pele, Boyhood vai-se impondo como uma epopeia fascinante em que, para Mason, acontecimentos como a liberdade de movimentos concedida por uma bicicleta ou a descoberta da nudez feminina, o confronto com um padrasto alcoólico ou a revelação dos poderes da arte fotográfica, tudo faz parte de um movimento vital em que a sua identidade possui (para ele e para nós, espectadores) tanto de transparente como de enigmático.
Não por acaso, a pureza cinematográfica de Boyhood tem suscitado paralelismos com a abrangência temporal e o fôlego dramático de algumas obras literárias — a minúcia social de Balzac ou os enigmas mais íntimos de Proust não serão estranhos aos mecanismos narrativos de Linklater; o próprio Ethan Hawke, em entrevista cerca de dois antes da primeira apresentação do filme (no Festival de Sundance, em Janeiro deste ano), evocava como modelo a grandiosidade de Tolstoi.
Seja como for, tendo em conta que tantas vezes assistimos à redução do cinema americano aos orçamentos de muito milhões, vale a pena não esquecer também que Boyhood foi feito com 4 milhões de dólares (cerca de 3,2 milhões de euros), valor “ridículo” no interior da máquina de Hollywood. Na prática, com o orçamento de Os Guardiões da Galáxia (170 milhões) podiam fazer-se 42 filmes como Boyhood — resta saber se há 42 cineastas capazes de os fazer.