quinta-feira, novembro 20, 2014

Malkovich por Malkovich (2/2)

Glenn Close, John Malkovich e Michelle Pfeiffer
LIGAÇÕES PERIGOSAS (1988), de Stephen Frears
John Malkovich passou pelo Lisbon & Estoril Film Festival em três registos: através das memórias do Steppenwolf Theatre, numa exposição de fotografias de Sandro Miller e protagonizando o filme Variações de Casanova. Como ele gosta de dizer, é um actor que se sente bem na sua “personalidade dividida” — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (17 Novembro).

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E não sentiu que, ao filmar este Casanova, estava a refazer algo do seu trabalho no Steppenwolf Theatre?
É um pouco como com as fotografias: estamos sempre a refazer o nosso trabalho — o que temos para dar é aquilo que somos. Em todo o caso, Steppenwolf é uma coisa muito específica...
Faz sentido dizer que se trata de uma comunidade artística, talvez uma família?
Digamos que não anda longe disso. E com uma visão muito particular. Por exemplo, a peça Coyote Ugly [Lynn Seifert], que dirigi em 1985: não seria possível ver nada parecido em nenhuma parte do mundo — é uma espécie de agressão, de invasão.
Invasão de quê?
De tudo. Dos olhos do espectador. Dos ouvidos. Dos sentidos. Da moral. É uma peça sobre uma mãe que tem relações sexuais com o filho. E um pai que tem relações sexuais com a filha que, no fim, acaba por ser a filha do seu filho... Digamos que se trata de uma história muito improvável de se ver onde quer que seja, pelo menos para além da ópera. Talvez que, no fundo, Steppenwolf exista como uma espécie de ópera...
Levando o espectador a perguntar: “Onde é que eu estou?”.
Sim. E com grandes emoções!
E em que filmes sentiu o mesmo?
Nenhum. O cinema é outro tipo de animal.
O teatro é emocionalmente mais forte?
Não, não colocaria as coisas dessa maneira. A única interpretação que consegui num filme mais ou menos parecida com uma interpretação no teatro foi em Color Me Kubrick/Identidade Kubrick [2005]: fazia um gay inglês, dono de uma agência de viagens falida, que viajava pela Inglaterra dizendo que era Stanley Kubrick — e as pessoas acreditavam-no.
Talvez pudesse dizer o mesmo da sua composição em Um Lugar no Coração [Robert Benton, 1984].
Não, de maneira nenhuma, até porque nessa altura, e durante muitos anos, não compreendi o que significa ser actor no interior de um filme. Porque, realmente, não é possível mudar o que quer que seja ou decidir que se vai refazer por completo a cena do dia anterior. Ora, no teatro, isso está a acontecer constantemente — de repente, podemos dizer que vou fazer isto ou aquilo numa cadeira de rodas ou, afinal, que a personagem que interpretamos é canhota... Nada disso é possível em cinema. Durante a rodagem de Ligações Perigosas, Mike Fox, um grande director de fotografia inglês (que foi assistente em Lawrence da Arábia), resumiu-me a situação, dizendo-me: “Johnny, se não está dentro do enquadramento, não existe...” O teatro é outro planeta — não há enquadramento.
Aceita, então, que digamos que é um homem de teatro, mais do que de cinema?
Sim e não. Venho do teatro. Adoro o teatro. Mas aprendi também a amar o cinema e tive mestres com quem nem todos tiveram a oportunidade de trabalhar: Manoel de Oliveira [p. ex.: O Convento], Raúl Ruiz, Bernardo Bertolucci, Michelangelo Antonioni, Stephen Frears, Steven Spielberg, Volker Schlöndorff... Acontece que as interpretações que consigo num palco não são possíveis num filme onde, afinal, o “momento mágico” não existe.
Acredita mesmo que não?
Não existe. Como poderia existir? Estamos a parar de dez em dez segundos... Limitamo-nos a fingir que acontece.
Mas o público sente muitos desses momentos.
O público sim, mas não o actor ou o realizador: estão condenados a inventar tudo a partir de nada. E não digo isto como uma queixa, apenas reconhecendo a singularidade de cada processo.
Sente-se, então, mais livre num palco?
Não é uma questão de liberdade.
Qual é, então, a palavra certa?
Claro que o actor é mais livre no teatro: movimenta-se mais à vontade, faz a montagem da interpretação à medida que avança. Acontece que, no cinema, a liberdade não é exactamente o critério decisivo.
Qual é o critério decisivo?
O que uma determinada imagem me diz — esse é o critério. De tal modo que para ganhar um Oscar, não é importante saber representar. Basta conseguir parecer aquele que, supostamente, se está a representar.
E voltamos ao fingimento.
Talvez, será uma maneira de colocar a questão. Tudo é artifício — num filme mais do que em qualquer outro contexto. Face a uma excelente interpretação, é provável que aqueles segundos que vemos sejam os únicos aproveitáveis de horas e horas de filmagens. Enfim, tenho a certeza que Jack Nicholson é fantástico em Chinatown, Al Pacino grandioso em O Padrinho, Robert Duvall sempre extraordinário... E gosto muito de Bruno Ganz, Marcello Mastroianni, William Hurt ou Bill Murray. Mas só sei aquilo que vejo. Numa peça, é diferente, porque sei que o actor está ali, não me pode mentir.