domingo, novembro 09, 2014

LEFFEST: um monstro em Nova Iorque


[ Garrel ]

* WELCOME TO NEW YORK (2014), de Abel Ferrara

Estranho filme, de facto. Abel Ferrara o disse, na sua apresentação no Estoril: esqueçam "Dominique" [Strauss Kahn], esqueçam [Gérard] "Depardieu", tentem ver Welcome to New York apenas como o resultado do trabalho conjunto de um realizador e um grupo de actores. Tarefa impossível, há que dizê-lo, quanto mais não seja porque vivemos tempos em que a intensidade mediática seja do que for não se apaga assim — e o escândalo sexual que envolveu o então director do FMI, num hotel de Nova Iorque, não é coisa socialmente vaga nem moralmente ligeira.
O certo é que o filme de Ferrara parte de uma insensatez radical (e fascinante): por um lado, mesmo não utilizando nomes de pessoas verdadeiras, convoca todos os sinais de um fait divers que se transformou numa convulsão política sem fronteiras; por outro lado, vai fazendo deslizar o seu Dominique — que, de facto, se chama Devereaux —para um domínio de muito crua especulação filosófica e religiosa. No limite, Ferrara refaz a dicotomia homem/mulher (que pontua quase todos os seus filmes), relançando a problemática cristã do pecado no coração da pulsão sexual. A pergunta que fica, aliás explicitada nos longos e magníficos diálogos entre Devereaux e Simone (Jacqueline Bisset), é se até mesmo o monstro pode ter direito a alguma hipótese de redenção — o cinema ganha com isso, mesmo se com isso o espectador fica sem saber quem pode (e, sobretudo, como) repor a ordem do mundo. E que ordem.