domingo, novembro 30, 2014

José Sócrates nas malhas da "reality TV"

RENÉ MAGRITTE
O Duplo Segredo
1927
Para nossa maior desgraça social, o efeito "José Sócrates" relança uma profunda desumanização televisiva — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (28 Novembro), com o título 'Sócrates na "reality TV"'.

Na agitação televisiva em torno da prisão de José Sócrates, tem emergido um sintoma esclarecedor: não há debate nem comentário em que não seja referida a irresponsabilidade de um jornalismo que vive em regime de duplo parasitismo com as atribulações do aparelho judicial.
É um progresso, apesar de tudo. Noutros tempos, quando alguém chamava a atenção para o linchamento mediático a que Sócrates estava a ser sujeito, tal bastava para que a estupidez “social” rotulasse de perigosa ameaça qualquer mente que não abdicasse do simples gosto de pensar.
Permito-me, por isso, repetir algumas palavras que escrevi a propósito de certas formas de tratamento televisivo de Sócrates, apontando a necessidade de discutir “as matrizes populistas da informação”, desmontar as suas “estratégias de produção de verdade” e compreender o modo como afectam as “representações globais da sociedade portuguesa”. E faço questão em voltar a escrever que a pertinência de tais questões se mantém, “mesmo que se venha a provar que José Sócrates é um malfeitor que merece a prisão perpétua (espero, aliás, se esse for o caso, que a justiça seja rigorosa e exemplar)”.
São palavras de um texto de Junho de 2010 e, se é verdade que não confundo a minha subjectividade com qualquer modelo de universalidade, não é menos verdade que permanecemos deficitários na reflexão sobre tais problemas. Com essa diferença, insisto, de agora haver mais vozes incomodadas com a degradação de alguns padrões jornalísticos.
Infelizmente, são poucos os que mostram disponibilidade para reflectir sobre tal degradação, enfrentando os efeitos apocalípticos da reality TV, não apenas no espaço televisivo, mas em todo o tecido social português (na noite de segunda-feira, na SIC Notícias, Clara Ferreira Alves foi uma das excepções). De facto, num contexto em que a obscena boçalidade do Big Brother foi imposta como coisa “natural” do quotidiano, não se pode esperar que o mais básico respeito por um ser humano — anjo ou demónio — seja um valor consistente da colectividade.