terça-feira, novembro 04, 2014

A guerra de Brad Pitt (1/2)

As mais recentes reconversões narrativas da Segunda Guerra Mundial chegam, agora, a uma grande produção centrada na figura de Brad Pitt — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Outubro), com o título 'Brad Pitt envolvido numa guerra realista'.

É um facto que o chamado “filme de guerra” — e, mais concretamente, o filme sobre a Segunda Guerra Mundial — corresponde a um género clássico que deixou de ser um produto regular dos estúdios americanos. Por vezes, tem regressado num registo que combina a evocação histórica com derivações mais ou menos fantasistas, como aconteceu em Sacanas sem Lei (2009), de Quentin Tarantino, com Brad Pitt a liderar o elenco. Em Fúria, escrito e dirigido por David Ayer, reencontramos Brad Pitt, agora como líder de um grupo de soldados que, no seu tanque (denominado “Fúria”), participam no avanço final das tropas aliadas em território alemão, durante o mês de Abril de 1945.
Nos EUA, um dos aspectos que tem suscitado mais discussões em torno de Fúria é a sua exposição fria e contundente da violência dos combates. Há quem elogie a capacidade de expurgar esses combates de qualquer ilusão romântica e também quem considere que a intensidade de algumas cenas não favorece um retrato fiel da experiência dos soldados nessas semanas em que o exército nazi foi sendo desmantelado até à tomada de Berlim. Seja como for, pode dizer-se que o filme consagra uma vontade de realismo que terá tido um decisivo momento charneira em 1998, quando Steven Spielberg realizou O Resgate do Soldado Ryan, sobre a invasão da Normandia.
Aliás, importa dizer que essa demanda realista não tem estado limitada à produção de Hollywood. Em contextos muito diversos, temos encontrado obras que revisitam as memórias da Segunda Guerra Mundial, apostando em ir para além dos valores clássicos do heroísmo cuja síntese terá sido feita, há várias décadas, por um título tão popular como O Dia Mais Longo (1962). Um bom exemplo dessa tendência mais recente poderá ser Lore (2012), título de origem alemã, dirigido pela australiana Cate Shortland, centrado na experiência de uma família alemã desmembrada precisamente na mesma altura em que se situa a acção de Fúria. Outro caso significativo será o polaco Ida (2013), de Pawel Pawlikowski, percorrendo os traumas interiores da guerra a partir da experiência de uma jovem nos anos 60 (foi apresentado pela Polónia como candidato à nomeação para o próximo Oscar de melhor filme estrangeiro).
Até certo ponto, Fúria recupera um dos dispositivos mais tradicionais do filme de guerra. A saber: os laços que se estabelecem no seio de um grupo de homens face às mais dramáticas situações de violência. Temos, assim, o líder calejado pelas memórias de muitos combates (Brad Pitt), liderando soldados com perfis tão peculiares como o crente que não abdica de invocar a protecção divina, a ponto de ter a alcunha de “Bíblia” (Shia LaBeouf), ou o novato que recebeu formação de dactilógrafo e, pelas circunstâncias, forçado a aprender a lidar com uma metralhadora (Logan Lerman).
O tom dominante é de profundo cepticismo, já não havendo lugar para a emergência de figuras heróicas e imaculadas. Nesta perspectiva, pode mesmo dizer-se que o clima emocional e o negrume moral de Fúria não são estranhos ao espírito daquele que era, até agora, o mais importante trabalho de Ayer como argumentista: foi ele, de facto, que escreveu Dia de Treino (2001), o filme de Antoine Fuqua que vale um Oscar de melhor actor a Denzel Washington, pela sua composição de um polícia corrupto. Entretanto, não será arriscado prever para Fúria uma boa performance nas nomeações para os Oscars, em particular nas chamadas categorias técnicas e com especial destaque para o trabalho do director de fotografia russo Roman Vasyanov.