terça-feira, setembro 16, 2014

Para onde vai a cinefilia?

Como defender o impulso cinéfilo? E, antes disso, onde está esse impulso? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Setembro), com o título 'Para defender a cinefilia'.

O cinema não tem de estar sujeito à lógica mercantilista com que há várias décadas se (des)educam os espectadores mais jovens. De facto, a vida dos filmes não se reduz a uma histeria de ruidosos “super-heróis” e efeitos especiais para usar e deitar fora. Mais do que isso: um filme não é um produto descartável que se esgote no tempo de degustação de um balde de pipocas (por mais saborosas que sejam)...
Dois lançamentos recentes nas salas escuras mostram como a relação do cinema com a memória é uma componente essencial da sua existência (e estou a pensar, antes de tudo o mais, na sua existência comercial). São eles: o filme de João Botelho, Os Maias, mostrando que o trabalho com o património literário não tem de estar submetido ao decorativismo “telenovelesco” e, claro, a reposição da obra-prima A Desaparecida (1956), de John Ford.
E se é verdade que os modelos do marketing que triunfaram um pouco por todo o lado (a começar pela Europa) provêm de Hollywood, não é menos verdade que é também no cinema americano que encontramos uma das atitudes mais consistentes na defesa e promoção (comercial, insisto) de uma relação viva e inteligente com as memórias cinéfilas.
Um exemplo recente foi a sessão organizada pela Academia de Hollywood, celebrando o 40º aniversário do lançamento da comédia de Mel Brooks, Frankenstein Júnior. Brooks esteve presente numa conversa moderada pelo crítico Leonard Maltin, contando ainda com a participação do produtor Michael Gruskoff e das actrizes Cloris Leachman e Teri Garr. Para além do contagiante bom humor da sessão, há observações muito curiosas sobre a composição dos actores, nomeadamente o trabalho de Gene Wilder na elegância burlesca do Dr. Frankenstein e a “naturalidade” com que Peter Boyle definiu o seu monstro.
Quem viu o filme na altura do seu lançamento, em 1974 ou 1975, não pode deixar de recordar que Frankenstein Júnior corresponde ainda a um tempo de existência de uma genuína comunidade de espectadores, em que o gosto (de ver um filme) não era um banal efeito secundário de campanhas mais ou menos agressivas. Passar a palavra — o mais básico “boca-a-boca” — era algo que emanava de um tecido cultural em que o cinema não existia como uma bizarria tecnológica que podia (como pode agora) morrer no ecrã de um telemóvel.
O que está em causa, entenda-se, não é qualquer exaltação unilateral do que acontecia “naquele tempo”... Nem sequer se pretende, entenda-se também, demonizar as muitas maravilhas que as novas tecnologias introduziram na nossa relação com os filmes. O que está em causa é a importância de viver o cinema como uma arte genuína e um património irredutível. Não esquecendo que defender a cinefilia não é um programa cultural abstracto, mas sim um valor que pode (e deve) enraizar-se na dinâmica do próprio mercado.