sábado, setembro 06, 2014

Maio 68 por Godard (1/3)

Weekend (1967)
Uma nova edição em DVD permite-nos reencontrar quatro títulos fundamentais da filmografia de Jean-Luc Godard: são obras marcadas pelas convulsões de Maio 68 e também pela procura de outras linguagens cinematográficas e ideias inovadoras para a política — este texto foi publicado no suplemento 'Qi', do Diário de Notícias (30 Agosto), com o título 'A arte de filmar a partir do zero'.

Procurando contrariar a diminuição do consumo de DVD, uma das opções do mercado tem sido a edição conjunta de filmes, em “caixas” ou “packs”. Já que o consumidor parece cada vez mais desinteressado do título isolado — que, em boa verdade, em muitos casos, irá estar disponível, poucos meses depois, nas plataformas televisivas —, investe-se na criação de “antologias” capazes de ilustrar um “tema”, normalmente um autor ou um género.
O “pack” Jean-Luc Godard que aqui nos ocupa, contendo quatro filmes preciosos — Fim de Semana (1967), Os Ventos de Este (1970), Vladimir e Rosa (1971) e Tudo Vai Bem (1972) — é um exemplo paradoxal dessa tendência. Porquê paradoxal? Porque, por certo através de uma involuntária ironia, consegue congregar o pior (do enquadramento informativo) e o melhor (os filmes!...) que este tipo de edições pode envolver.
Assim, estamos perante um caso eloquente de incapacidade de contextualização: as datas dos quatro filmes apenas são referidas nas letras mais discretas das fichas do produto e não há nenhuma informação, mesmo minimalista, para os situar na trajectória criativa do realizador, muito menos na dinâmica histórica e ideológica dos anos 60/70. As próprias capas são incongruentes. Se Fim de Semana e Tudo Vai Bem utilizam os respectivos cartazes originais, os outros dois títulos são “ilustrados” com imagens francamente inadequadas: a fotografia de Os Ventos de Este (a tradução correcta seria “Vento de Leste”) mostra Godard numa pose bem conhecida (de óculos escuros, a observar uma tira de película) que provém dos tempos iniciais da Nova Vaga, oito ou nove antes do filme editado; por sua vez, na capa de Vladimir e Rosa está uma outra imagem de Godard que é, no mínimo, posterior em dez anos à data do filme (talvez mesmo da época de Atenção à Direita, título de 1987).
Ao mesmo tempo, importa reconhecer que, ainda que através de um acaso feliz, o quarteto agora editado pode funcionar como um pedagógico instrumento para acedermos a uma zona fulcral da imensa galáxia “godardiana” [ver dossier Criterion], zona que, afinal, permanece tão mal conhecida, quase sempre reduzida a clichés decorrentes de uma demagogia mentirosa, ou tão só da mais pura ignorância. Tudo se passa, afinal, em torno da data “mágica” que está no centro simbólico do tempo em que estes quatro filmes nasceram: 1968. Aliás, em rigor, devemos dizer: Maio 68.