domingo, setembro 14, 2014

Eça por Botelho (1/2)

EÇA DE QUEIROZ
Caricatura de Rafael Bordallo Pinheiro,
Álbum das Glórias, Julho 1880
Grande acontecimento cinematográfico: João Botelho refaz Os Maias, de Eça de Queiroz como um exercício operático em que o fascínio do passado ecoa na crueza do presente — este texto integrou um dossier sobre o filme, publicado no Diário de Notícias (11 Setembro).

O que significa ler Os Maias, de Eça de Queiroz, em pleno séc. XXI? Mais do que isso: como é que, nos nossos dias, uma leitura de Os Maias pode dar origem a um objecto de cinema? O novo filme de João Botelho (estreia hoje, em vinte salas de todo o país) pretende ser uma resposta exuberante a tais interrogações, começando por propor uma variação no subtítulo do próprio Eça: “Episódios da vida romântica” converteu-se em “Cenas da vida romântica”.
Tal como em trabalhos anteriores da sua filmografia — incluindo Quem És Tu? (2001), A Corte do Norte (2008) e Filme do Desassossego (2010), inspirados em Almeida Garrett, Agustina Bessa-Luís e Fernando Pessoa, respectivamente —, Botelho segue uma via que, embora mostrando um evidente fascínio pelas marcas específicas da época retratada, trata o texto como matéria principal de todo o trabalho de encenação. Daí que também em Os Maias perpasse a sugestão de uma certa universalidade portuguesa: os temas da hipocrisia social, do culto das aparências e da corrupção no interior da cena política são tratados de modo a encontrarem ressonâncias simbólicas no olhar, na sensibilidade e nas ideias do espectador de 2014.
JOÃO BOTELHO
Foto: Miguel A. Lopes
Afinal, convém não esquecer que no centro do romance e do filme está o amor “impossível” de Carlos da Maia (Graciano Dias) e Maria Eduarda (Maria Flor). A sua aproximação amorosa, os ecos mais ou menos escandalosos da sua relação e, por fim, o assombramento que recobre a sua paixão vêm abalar a imagem social dos Maias e, antes disso, a suposta placidez da sua casa de Lisboa, o Ramalhete — como Eça escreve no seu parágrafo de abertura: “(...) Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da senhora D. Maria I.”
Mais uma vez, essa ambivalência das referências históricas leva o cineasta a explorar uma certa dimensão teatral cuja inspiração principal está, como ele gosta de dizer, no assumido artifício da ópera. Aliás, em 2011, no Teatro de São Carlos, Botelho encenou a ópera Banksters, de Nuno Côrte-Real, com libreto de Vasco Graça Moura.
No caso de Os Maias, a chamada reconstituição de época (a acção inicia-se em 1875) faz-se, não a partir de cenários tradicionais ao ar livre, mas sim de telas gigantes da autoria do artista plástico João Queiroz, em particular para figurar a zona do Chiado, em Lisboa. Para os interiores, foram utilizados palacetes de Lisboa, Ponte de Lima e Cabeceiras de Basto. Os Maias foi produzido por Alexandre Oliveira, da Ar de Filmes, com o Brasil como país coprodutor. O orçamento de 1,5 milhões de euros contou com apoios do Instituto do Cinema e do Audiovisual (por concurso) a Câmara Municipal de Lisboa e o Montepio.