sábado, agosto 16, 2014

Pedro Costa, o cinema e a sua nobreza

Locarno,  13-08-2014
1. Com um misto de tristeza e resignação, há que reconhecer que o sistema de relações no interior do cinema português não é um modelo de humanismo: as cumplicidades de um dia podem, no dia seguinte, transformar-se em rupturas mais ou menos publicadas e publicitadas. Nesse novelo de sensibilidades, em que as "razões" são muitas (como diz uma personagem de Renoir: chacun a ses raisons), não é simples, porventura é mesmo impossível, encontrar o lugar radical do Neutro — no sentido em que Barthes dizia que o Neutro é aquilo que "contorna" ou "desconcerta" o paradigma.

2. Em todo o caso, a pretexto do prémio de realização ganho por Pedro Costa em Locarno, com o filme Cavalo Dinheiro, podemos voltar a falar da contínua ameaça do paradigma que, desgraçadamente, tende a ser o discurso corrente no nosso audiovisual marcado pelas mais variadas formas de poder televisivo. A saber: que o cinema português "apenas" serve para ganhar prémios no estrangeiro...

3. O problema com tal paradigma não decorre apenas da sua cegueira estética e histórica — afinal de contas, Pedro Costa é um dos nomes maiores do cinema contemporâneo (insisto: não do cinema português, mas do cinema contemporâneo). O problema reside na chantagem argumentativa que se foi instalando.

4. Importa também reconhecer que muitos filmes portugueses continuam a ter dificuldades para encontrar um lugar sólido no mercado. Claro que sim — dizê-lo não significa qualquer legitimação dos discursos tele-financeiros que, por princípio, menorizam esses filmes. Acontece que, muito antes de podermos pensar tais dificuldades a partir das características específicas dos filmes, importaria, creio eu, reflectir sobre toda uma conjuntura financeira, política e simbólica, numa palavra, cultural, em que as matrizes telenovelescas detêm quase todos os poderes de fabricação, difusão e promoção.

5. Não escondo a veemente subjectividade que determina estas minhas palavras (a ideia de que o crítico está condenado a ser o paradigma da "objectividade" não passa de uma impostura demagógica que se vende bem em alguns debates televisivos). Dito de outro modo: por razões profissionais e afectivas, aguardo com enorme expectativa um filme como Cavalo Dinheiro. Mas importa relembrar que, independentemente dos estados de alma seja de quem for, algo está mal num país que tem personalidades de excepção como Pedro Costa a marcar presença em lugares emblemáticos como Locarno, ao mesmo tempo que o espectador comum — a quem nunca falaram de Pedro Costa, Locarno e tantas outras coisas... — é todos os dias bombardeado pela indigência narrativa dos nossos horários nobres. "Nobres"? Talvez seja mesmo preciso não ter medo das palavras e começarmos a falar de nobreza.