quarta-feira, agosto 27, 2014

O realismo segundo Ken Loach (1/2)

Com O Salão de Jimmy, Ken Loach prolonga a saga realista do seu cinema, evocando a Irlanda entre os dois conflitos mundiais — este entrevista, realizada do dia 24 de Maio de 2014, em Cannes, foi publicada no Diário de Notícias (22 Agosto), com o título '“Com as tecnologias digitais as pessoas concentram-se menos”'.

Nascido em 1936, Ken Loach é um prestigiado veterano do cinema britânico. Já ganhou uma Palma de Ouro em Cannes, com Brisa de Mudança (2006), e um prémio de carreira da Academia Europeia de Cinema, em 2009. Sempre marcada por questões sociais e políticas, a sua obra tem passado por temas que vão desde a gravidez juvenil (Vida em Família, 1971) até à guerra no Iraque (Route Irish, 2010). Antes de O Salão de Jimmy, dirigiu The Spirit of 45, documentário sobre a Segunda Guerra Mundial, a estrear em Setembro.
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Para si, evocar o passado da Irlanda é também uma maneira de falar do presente?
Sem dúvida. A marginalização das visões alternativas e das próprias pessoas que falam ou agem em favor dos pobres é algo que, infelizmente, encontramos em todos os países. Actualmente, em alguns lugares, há raparigas que colocam a sua vida em perigo apenas porque querem educação.
Quando conta uma história vivida há setenta ou oitenta anos, como acontece em O Salão de Jimmy, sente que o seu trabalho como realizador é diferente?
Não há diferença. Enfim, quando se filma o passado há mais trabalho, já que é preciso criar tudo — quando queremos filmar uma acção numa rua dos nossos dias, vamos para a rua e... filmamos. Em qualquer caso, o trabalho da câmara, a direcção de actores e modo de contar a história, tudo isso é idêntico.
E nesse contexto os seus actores têm alguma margem para improvisar?
Um pouco... mas o argumento está escrito. Digamos que, um bocadinho à maneira do jazz, por vezes alguma espontaneidade é bem-vinda.
Ken Loach
Nessa perspectiva, continua a ver os seus filmes como um desenvolvimento da tradição britânica do realismo?
Creio que sim, mesmo se me parece que se trata, antes do mais, de uma tradição com raízes literárias. A observação da vida de todos os dias é algo que vem desde a Idade Média, com Chaucer, prolongando-se por autores como Shakespeare ou Dickens — e essa é, obviamente, a cultura em que cresci.
Será que há muitas diferenças de produção em relação aos tempos em que realizou filmes como Kes (1969) ou Vida em Família (1971)?
De facto, não creio que as coisas sejam assim tão diferentes. As questões básicas, quer dizer, os elementos clássicos do drama — personagens, narrativa, conflito, resolução do conflito, consequências da acção — não mudam. Há evoluções técnicas, sem dúvida, mas são factores marginais. A essência mantém-se.
Entretanto, hoje em dia, a existência dos filmes passa também pelas mais diversas formas de difusão (salas, televisão, VOD, etc.). Como avalia essa evolução?
Para dizer a verdade, sinto que não sei muito sobre isso. Detesto ver filmes na televisão, prefiro sempre os cinemas. Na sala escura, o cinema é uma experiência colectiva que envolve uma muito maior concentração — não nos vamos levantar para fazer um chá ou atender o telefone... As tecnologias digitais fizeram com que as pessoas se concentrem menos e por períodos mais curtos. Quando vemos uma coisa num aparelho nas nossas mãos, ou mesmo no ecrã de televisão, a tentação para fazer zapping é sempre muito grande. É por isso que os filmes estão cheios de explosões e dinossauros... Digamos que quem faz esses filmes pensa que, se não lançar um dinossauro contra o espectador, ele vai mudar de canal. Enfim, por todas essas diferenças, acredito que o cinema nas salas vai sobreviver.