terça-feira, agosto 05, 2014

O ciúme segundo Garrel (1/2)

Philippe Garrel continua fiel ao seu cinema obsessivamente fixado na intimidade: Ciúme é mais um notável exemplo do seu trabalho — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Agosto), com o título 'Philippe Garrel desvenda intimidade, amor e ciúme'.

Embora conotado com um cinema francês algo “marginal”, Philippe Garrel (n. 1948) tem sido uma presença regular no mercado português. Títulos recentes da sua filmografia, como O Coração Fantasma (1996), Os Amantes Regulares (2005) ou A Fronteira do Amanhecer (2008), chegaram às salas e estão disponíveis em DVD. Agora, é a vez de descobrirmos Ciúme, produção de 2013 em que o cineasta volta a dirigir o seu filho, Louis Garrel, desta vez contracenando com Anna Mouglalis, actriz que descobrimos em Coco Chanel & Igor Stravinsky (2009), de Jan Kounen, vindo depois a participar em Photo (2012), de Carlos Saboga.
O menos que se pode dizer de Ciúme é que se trata de uma eloquente confirmação do carácter obsessivo da obra de Garrel. Talvez o sinal mais evidente de tal carácter seja o renovado gosto pela fotografia a preto e branco, neste caso com assinatura de um mestre belga, Willy Kurant (80 anos), com um trajecto ligado a autores como Orson Welles, Jean-Luc Godard ou Maurice Pialat. Longe de ser “formalista”, trata-se de uma opção que decorre da fidelidade a um cinema da intimidade enraizado num princípio da Nova Vaga francesa: a universalidade de um filme pode começar nos mais delicados particularismos (emocionais e dramáticos) da história que nos conta.
Philippe Garrel
A história que nos é contada envolve, afinal, atribulações partilhadas por muitos casais contemporâneos. Tudo começa na separação de Louis e Clothilde (Louis Garrel e Rebecca Convenant, respectivamente), gerando-se um triângulo quando Louis começa a namorar com Claudia (Anna Mouglalis), triângulo que, na verdade, se converte num quadrilátero, já que toda esta dinâmica de amores e ciúmes envolve também a pequena Charlotte (Olga Milshtein), filha do casal separado.
Garrel concebe o seu filme menos de acordo com uma lógica de “progressão”, mais como uma antologia de situações mais ou menos autónomas em que, directa ou indirectamente, cada personagem experimenta o desafio formulado por Louis. A saber: até que ponto aquele que ama reconhece (ou não) barreiras ao próprio impulso amoroso.
Estreado no Festival de Veneza do ano passado, Ciúme corresponde, em última instância, a uma memória familiar, ligada ao pai do realizador, o actor Maurice Garrel (1923-2011). As suas palavras são esclarecedoras: “O tema do filme é que Louis, o meu filho, interpreta o seu avô (com a idade que Louis tem hoje, 30 anos). (...) É a história de um amor que o meu pai viveu com uma mulher (e admirando essa mulher, acabei, sem querer, por fazer ciúmes à minha mãe, ela que foi uma mulher exemplar). Eu fui a criança educada pela minha mãe — na história do filme, eu sou a pequenita.”