quinta-feira, agosto 28, 2014

Nos 20 anos de 'Dummy' (parte 1)


Lançado em finais de agosto de 1994 o álbum de estreia dos Portishead é hoje um disco de absoluta referência quando se conta a história dos anos 90. Este texto é parte de um artigo originalmente publicado no suplemento Q. do DN, com o título "Dummy: um clássico do nosso tempo".

Todos temos memórias diferentes mesmo quando falamos de um disco comum. Mark Oliver Everett, o “E” dos Eels, recorda que quando ouviu os Portishead pela primeira vez estava a guiar e teve de encostar o carro e parar para poder escutar com atenção. Já o sueco Jay Jay Johansson passou estas canções, num leitor portátil, num serão entre amigos no campismo, e com efeitos bem diferentes entre a plateia. Uns acabarem a noite assustados e deprimidos, ao passo que ele “adorou” aquela música a cem por cento. Estes são relatos de primeiros contactos com a música dos Portishead que encontramos no volume da série 33 1/3 dedicado a Dummy, de R.J. Wheaton, livro que assinala o estatuto de “clássico” do nosso tempo que hoje atribuímos ao álbum que em 1994 nos apresentou os Portishead.

O disco marcou um tempo de mudança, acentuando a diluição de fronteiras entre os terrenos indie, os da música de dança, o hip hop e a música soul. E foi também reflexo do progressivo amadurecimento de novas gerações de não músicos ou, como descreve Phil Johnson em Straight Outa Bristol, “pessoas que não tinham estudado um instrumento nem sequer tocado em bandas, de DJ a rappers que atuavam nos seus quartos frente aos espelhos”, muitos deles tendo “aprendido as suas técnicas entre festas com sound systems ou escutando os novos sons do hip hop americano que eram acolhidos não apenas na música mas também como parte de uma nova cultura de beats, atitude, arte e dança” (1).

Tal como Pet Sounds (1966) dos Beach Boys e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967) dos Beatles traduziram um ponto histórico e tornaram-se paradigmas de um avanço nas tecnologias de gravação (assinalando nesses dois casos o assumir do estúdio como, mais que apenas um espaço para gravar, uma ferramenta a explorar no processo criativo), também Dummy é um dos álbuns que representam a chegada de um novo patamar na relação das máquinas e dos sons. Uma das mais interessantes marcas da identidade da relação do disco com a tecnologia do áudio é, contudo, o assumir de ecos de marcas de vivências anteriores no corpo da música. Ou seja, os efeitos da eletricidade estática e de imperfeições que lembramos dos tempos do vinil, assim como a “sujidade” das fitas analógicas (como o hiss que lembramos do tempo das cassetes), são integrados na textura de uma música que, criada na era digital, continha assim em si as heranças de tempos que a precediam. Esta presença textural, que define sugestões de espaço e traduz uma forma de entender a nostalgia como uma força ativa da memória, toma aqui um peso tão determinante na construção de canções em que reconhecemos ainda arquiteturas rítmicas que nasceram da assimilação de ensinamentos do hip hop. A composição aceita e depura também heranças clássicas da canção e cede depois a linha da frente dos acontecimentos a uma voz desencantada e assombrada que lembra as fragilidades da humanidade que assim se expõe. A modernidade, que em Dummy conhece um dos seus marcos de afirmação na música dos anos 90, não esconde assim que há toda uma história que a precede e sem a qual este presente não seria possível. A geração espontânea, como Francesco Redi (2) já nos tinha dito no século XVII, é coisa que de facto não existe.

(1) in Straight Outta Bristol, de Phil Johnson Coronet, 1997), pág. 15
(2) Francesco Redi (1626-1697) Naturalista italiano, foi o primeiro a contestar experimentalmente a geração espontânea. É visto como o fundador da biologia experimental.