quinta-feira, julho 03, 2014

85 minutos na vida de Ivan Locke

Os comentadores de futebol falam da "justiça" e "injustiça" dos resultados, mas continuam a não explicar qual a lei que lhes confere autoridade para tratar as peripécias do futebol como se fossem juízes de um tribunal... Algo de semelhante acontece quando, durante um directo, os locutores dizem que estamos a assistir a um evento "em tempo real" — que isso dizer que quando evocamos algo que aconteceu o tempo se tornou... irreal? Enfim, pensar o tempo é coisa que, felizmente, o grande cinema não desistiu de fazer. Veja-se o exemplo notável do filme Locke, de Steven Knight, com Tom Hardy — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Junho), com o título 'Factos e histórias do "tempo real"'.

Nas televisões, mas também nas rádios e em muitos sites com componentes jornalísticas, triunfou um lugar-comum “conceptual” em torno dos acontecimentos noticiados em directo — de acordo com a linguagem dominante em tais espaços, esses acontecimentos seriam percebidos “em tempo real”.
A consagração de tal expressão é reveladora da lógica pueril que passou a dominar o espaço televisivo e, em boa verdade, a generalidade da paisagem mediática: assim, a simultaneidade é entendida — e, num certo sentido, promovida — como prova irrefutável de verdade.
Que podemos contrapor a este simplismo que ignora as circunstâncias específicas de cada percepção temporal? Face a esta “objectividade” que escamoteia o efeito normativo do meio de qualquer mensagem, como entender a dinâmica humana das subjectividades? Ou ainda, para irmos ao coração do assunto: qual a responsabilidade do jornalista que organiza o tempo da notícia?
Não há uma resposta única, muito menos unívoca, a tais perguntas. Locke, filme escrito e dirigido por Steven Knight, aí está para nos ajudar a compreender a complexidade envolvida. O que está em jogo é a possibilidade de sentir (e pensar) para além do determinismo que confunde a dimensão temporal com uma espécie de neutralidade “cronológica”, em última instância ilibando de qualquer responsabilidade as narrativas humanas (incluindo as narrativas informativas e noticiosas).
Ao contar a história de Ivan Locke, interpretado pelo versátil e brilhante Tom Hardy —, Knight cria uma estrutura temporal, rara na história dos filmes, mas de perturbante impacto quando trabalhada com tanta subtileza e maestria. Trata-se de fazer coincidir a duração da acção com o tempo de projecção do próprio filme — Locke dura 85 minutos, o que quer dizer que se poderia também chamar “85 minutos na vida de Ivan Locke”.
Na história do cinema, há filmes que apostaram em tal “sobreposição”, consumando-a através de uma filmagem “em contínuo”, num único e longo plano-sequência. Em 1948, com A Corda, Alfred Hitchcock fê-lo para encenar um crime e o processo da sua descoberta, criando uma sensação de claustrofobia reforçada pela permanência num único cenário. Em 2002, Aleksandr Sokurov encenou A Arca Russa como uma deambulação pelos salões do Museu do Hermitage, explorando a continuidade da filmagem para, numa assumida contradição formal, apresentar situações diversas de diferentes contextos históricos.
Porventura inspirando-se em tais experiências, Knight filma o seu anti-herói como alguém que vive a linearidade do tempo numa vertigem em que tudo se cruza: angústia pelo futuro, crueza do presente, persistência do passado. O seu tempo real nada tem a ver com qualquer ilusão de transparência porque, afinal, o tempo se faz também do espaço que ocupamos — e de todos os espaços que ocupam a nossa memória ou assombram a nossa imaginação.