sexta-feira, junho 27, 2014

O cinema e os jovens de John Green

Como representar os jovens contemporâneos? Que histórias com eles (e para eles) se podem contar? Os livros de John Green parecem tentar responder a tais interrogações, pelo menos a avaliar pelo filme A Culpa É das Estrelas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Junho), com o título 'Por uma nova "espiritualidade?"'.

Apesar de asfixiado pela conjuntura mediática que tende a reduzi-lo a um histérico festim de “efeitos especiais”, o cinema continua a existir — e, sem dúvida, a resistir — como sistema de linguagens ancorado na história contemporânea e, em particular, nas suas dinâmicas sociais. Um esclarecedor sintoma poderá ser A Culpa É das Estrelas, filme de Josh Boone que, a partir de um “best-seller” de John Green, encena a dramática paixão vivida por dois adolescentes, ambos atingidos pelo cancro.
Se qualquer filme se distingue, antes do mais, pelo seu trabalho especificamente cinematográfico, então talvez seja inevitável começar por reconhecer a fragilidade da proposta: A Culpa É das Estrelas evoca matrizes devedoras do melodrama clássico mas, em boa verdade, vai sendo contaminado pelo academismo de muitos telefilmes. Apesar de tudo, com um trunfo a não menosprezar: no par de protagonistas, Shailene Woodley supera o esforçado Ansel Elgort, confirmando-se como um dos grandes jovens talentos do actual cinema americano (vimo-la, por exemplo, em 2011, contracenando com George Clooney em Os Descendentes, de Alexander Payne).
Dito isto, importará reter o mais significativo, precisamente aquilo que faz de A Culpa É das Estrelas um caso “sociológico” a ter em conta. Estamos perante um filme que reflecte um certo processo de “espiritualização” que tem contaminado alguns projectos cinematográficos e, sobretudo, televisivos. O Filho de Deus, de Christopher Spencer, com Diogo Morgado, será a ilustração mais medíocre de tal tendência, tentando “colar” a rotina televisiva às memórias dos épicos bíblicos de Hollywood. No registo de “saga juvenil”, Divergente — curiosamente com Shailene Woodley — pode ser visto como expressão da mesma tendência, encenando os jovens a partir de uma certa solidão “social” com vagas, mas curiosas, ramificações no imaginário político dos nossos dias.
A Culpa É das Estrelas reflecte, assim, a preocupação de encontrar um espaço simbólico de caracterização dos mais jovens que os liberte da estupidez narrativa de muitos “folhetins” dos nossos dias (entre nós ligados à inanidade do modelo consagrado por Morangos com Açúcar). Por vezes, tal preocupação conduz o filme a paralelismos “metafóricos” de pura demagogia — veja-se a sequência em que os protagonistas visitam a Casa Museu de Anne Frank, em Amsterdão. Outras vezes, assistimos a uma insólita tentativa de “purificação”: e se o calvário do par central fosse a expressão de uma nova “transcendência” juvenil?
Tendo em conta que os mais jovens são todos os dias instrumentalizados em função do consumo (observe-se a proliferação das suas imagens estereotipadas nos anúncios de telemóveis e “gadgets” electrónicos), A Culpa É das Estrelas emerge, pelo menos, como uma alternativa figurativa. Vale a pena tentar acompanhar os diversos sinais deste fenómeno.