terça-feira, abril 08, 2014

Memórias do Cambodja

Rithy Panh nasceu em Phnom Penh, Cambodja, em 1964, tendo vivido num campo de "trabalho" do sangrento regime dos Khmers Vermelhos (1975-79). A sua obra cinematográfica, agora revelada no mercado português através de A Imagem que Falta, é um extraordinário exemplo de resistência humana e inteligência cinematográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Abril), com o título 'À procura do visível e do invisível'.

Colocando o seu filme sob o signo da “imagem que falta”, Rithy Panh começa por nos dizer que esse vazio não é apenas informativo, mas visceralmente político. Não estamos, portanto, no interior da lógica televisiva — que tem a sua sinistra apoteose no Big Brother — segundo a qual importa dar a ver as imagens mais “chocantes” para garantir algum suplemento de verdade. Nada disso. Acontece que cada vivência colectiva se distingue tanto pelas imagens que circulam no seu interior como por aquelas que, eventualmente, são consideradas indesejáveis ou interditas. Aliás, a esse propósito, seria interessante discutir porque é que as democracias europeias, enraizadas no respeito dos direitos humanos, continuam a não assumir qualquer posição (política, justamente) sobre o poder devastador da “reality TV” nas dinâmicas e valores do audiovisual.
Em qualquer caso, o tema de Rithy Panh é incomparavelmente mais trágico. A Imagem que Falta parte da ausência de imagens dos campos de “trabalho” do regime dos Khmers Vermelhos, contrapondo a energia das memórias dos que, como ele, sobreviveram. Com essa admirável derivação cinematográfica que consiste em proclamar que, não havendo imagens “informativas”, importa criar outras que contrariem qualquer forma de esquecimento.
Os bonequinhos de barro que Rithy Panh aplica para sustentar o seu discurso constituem uma prodigiosa manifestação da energia figurativa que o cinema pode envolver. Mais do que isso: mostram como a atitude documental está muito longe de se reduzir a uma mera acumulação de “informação” recolhida em arquivo. Trata-se, afinal, de celebrar o mais nobre dos arquivos — a memória humana — e também a sua capacidade de entender o cinema como arte suprema de lidar com o visível e o invisível.