sábado, abril 26, 2014

IndieLisboa 2014 (1):
Um novo retrato do Egito


Não é preciso termos alguém de guitarra em punho e um microfone pela frente para se falar da relação da música com o mundo político. E nem toda a música que reflete um contexto político é necessariamente de “intervenção” (no sentido em que a história da canção “política” portuguesa integrarou este termo no nosso léxico), sendo que porém é algo que intervém na sociedade, assim refletindo o que ocorre à sua volta e, eventualmente, ajudando-a a mudar. Podemos mesmo dizer: a evoluir. Tudo isto para falar de Electro Chaabi, documentário de Hind Meddeb que passou ontem no Cinema São Jorge integrado na secção Indie Music desta 11ª edição do IndieLisboa (repete dia 3, naquele mesmo cinema, pelas 21.30) e que nos leva a um Egito atual, escutando espaços associados a um fenómeno musical que, de certa forma, nos concede também um retrato de um país em mudança depois dos efeitos da “revolução” que levou, uma certa “Primavera” para aqueles lados (não que esteja tudo resolvido como os mais esperançosos de ainda mais evidentes mudanças eventualmente aguardassem).

Convém começar por lembrar que, no mundo árabe, o Egito sempre foi uma das maiores capitais de acontecimentos musicais, lançando carreiras de enorme impacte local e nos países ao seu redor. O filme lança-nos contudo num mundo bem diferente do que se faz entre estúdios de gravação, discos, palcos e programas de rádio. Estamos na rua, acompanhando um movimento (designado como música 'mahragan', expressão que traduz a ideia de festival) que nasce da assimilação de ecos da cultura hip hop, utiliza novas tecnologias ao serviço da criação de som (dos computadores e sintetizadores às mesas de mistura de DJs), a cruza com uma forma realista de observar o quotidiano ao seu redor e, depois de nascer entre festas e casamentos, gera fenómenos de maior amplitude, chamando multidões à rua para escutar, cantar e dançar (mostrando as imagens a separação “cultural” de sexos, com o grosso da festa sendo mais intensamente vivido no masculino.

A realizadora, que viveu a juventude entre a França e o Magerbe, e trabalha como repórter para uma revista, partiu para Cairo e, entre bairros mais carenciados, começou a descobrir um mundo de músicos, entre DJs e MCs encontrando sinais de uma consciência crítica dos ecos da revolução. As suas músicas falam do presente, comentam e debatem ideias, apelando aos que escutam e assim partilham palavras que se transformam em hinos que todavia estimulam inevitavelmente a festa e a dança. A câmara observa as ruas onde moram as casas dos músicos que visita (dando-nos a conhecer os seus espaços de vida e trabalho), as mesmas que de noite se enchem para celebrar, muitas vezes com músicos e luzes instalados em telhados, lá em baixo a multidão aderindo, fazendo desta, afinal, uma música do seu tempo. As palavras são simples e claras, não temem autoridades nem hierarquias. E ao comentar e ser fruto de um tempo político diferente (fala-se de Mubarak, vemos cartazes com o rosto de Morsi, comentam-se cenários de uma eventual rotulagem desta música como “blasfema” pela Irmandade Muçulmana), Electro Chaabi é, afinal, um belíssimo filme sobre o Egito pós-Tahir.