segunda-feira, março 24, 2014

Wadjda ou a história de uma bicicleta

Wadjda é uma menina de tem 11 anos, quer uma bicicleta, vive na Arábia Saudita... e não é fácil conciliar tudo isso: O Sonho de Wadjda é o primeiro filme totalmente rodado na Arábia Saudita e a primeira longa-metragem de ficção dirigida por uma mulher saudita — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Março), com o título 'Como contar a sua história?'.

Creio que seria (ou será) um erro tentarmos estabelecer uma relação com o filme O Sonho de Wadjda a partir de qualquer pressuposto enraizado no feminismo ocidental. É bem verdade que Wadjda (a luminosa Waad Mohammed) vive num universo em que a simples ambição de ter uma bicicleta pode ser considerada coisa inadequada pela autoridade familiar ou escolar... Em todo o caso, estaríamos a trair os seus sentimentos mais fundos se a encarássemos como militante de um qualquer programa de “libertação” feminina.
Na sua serenidade descritiva, a realização de Haifaa al-Mansour não está à procura de um sentido redentor que confira ao filme o estatuto de objecto de “denúncia”. Aliás, tal conceito implicaria duas coisas complementares: por um lado, alguma memória histórica que ajudasse a situar o sistema de regras e valores no interior do qual Wadjda se movimenta; por outro lado, um projecto de acção que conferisse à sua vontade de ter uma bicicleta uma lógica global de intervenção. Ora, pode dizer-se que O Sonho de Wadjda é uma narrativa sem passado nem futuro — tudo o que acontece, mesmo a participação na competição de recitação do Corão, surge-nos com a intensidade de um presente absoluto. Daí a ternura que circula por todo o filme, evitando reduzir as suas personagens a banal expressão de uma qualquer ideia mais ou menos “simbólica”, fixa e formatada.
Estamos, afinal, perante um acontecimento genuinamente cinematográfico — e, mais do que isso, cinéfilo. Nada a ver com o voluntarismo simplista de muitas reportagens televisivas que julgam que colocar um microfone à frente de alguém, pedindo-lhe “conte-nos a sua história”, constitui um processo automático de conhecimento intocável. Bem pelo contrário, este é o retrato de uma personagem que não sabe muito bem como contar a sua história, mas que pressente que ter uma bicicleta pode ser... um acontecimento histórico. Para ela, e não só.