sábado, março 15, 2014

"O Congresso" e o futuro digital (1/2)

Anchors Aweigh (1945)
Seja como for, o nosso futuro (e não apenas o do cinema) vai passar pelo digital: eis a "mensagem" fria desse filme fascinante que é O Congresso, de Ari Folman — este texto integrava um dossier sobre o filme, publicado no Diário de Notícias (12 Março).

Foi há quase setenta anos que Gene Kelly dançou com a figura animada do ratinho Jerry (da dupla Tom & Jerry) no musical Anchors Aweigh/Paixão de Marinheiro (1945), de George Sidney. Dito de outro modo: as experiências que combinam personagens de carne e osso com desenhos animados são quase tão antigas como a história do cinema — começaram mesmo nos tempos primitivos do mudo —, traduzindo essa vontade mais ou menos irónica de desafiar os limites físicos e simbólicos da figura humana. Podemos, aliás, citar inúmeros exemplos de tal atitude, desde os clássicos Mary Poppins (1964) e Quem Tramou Roger Rabbit? (1988) até à recente versão de Alice no País das Maravilhas (2010), assinada por Tim Burton.
Agora, a experiência de Ari Folman em O Congresso envolve um factor indissociável de todo um debate — que vai da tecnologia à filosofia — sobre a generalização das imagens digitais. Ou talvez mesmo daquilo que podemos designar como a digitalização do mundo contemporâneo.
A actriz interpretada por Robin Wright é confrontada com o mais cruel fantasma que passou a assombrar os actores contemporâneos, o mesmo que, afinal, circula pela experiência charneira de Avatar (2009), de James Cameron. A saber: a possibilidade de continuar a existir no cinema, já não a partir da sua presença física, mas sim através de uma matriz digital, infinitamente recuperada e manipulada. Quando Robin Wright participa no Congresso Futurológico a que o título se refere, o filme transfigura-se, também ele, em acontecimento totalmente digital: o que Folman coloca em cena é menos um mundo digital alternativo, e mais a possibilidade de a nossa existência “continuar” através do digital.
Daí, sem dúvida, a dificuldade — geradora de um inquietante fascínio — de incluirmos O Congresso num determinado género cinematográfico. Estamos perante um drama existencial ou uma fábula transcendental? Em qualquer caso, o mundo digital obriga-nos a repensar a própria identidade humana.