domingo, fevereiro 23, 2014

Lou Reed em quatro álbuns (2)

Este texto é um excerto de um artigo sobre Lou Reed publicado em inícios de janeiro no suplemento Q. do DN com o título: O legado imortal do poeta da cultura rock'n'roll.

O culto pelos Velvet Underground nasceu, de certa maneira, do entusiasmo de David Bowie. Quem o defende é Peter Doggett, que em Growing Up In Public recorda como o cantor britânico seguia os Velvet Underground com entusiasmo desde 1967 e que, numa altura em que a música do grupo americano não era ainda presença regular no Reino Unido, já Bowie tocava algumas das suas canções em palco, ora citando Venus in Furs no seu Little Toy Soldier ou mesmo através de versões de Waiting for the Man ou White Light/White Heat (que chegou a levar a uma sessão na BBC). E quando Reed visitou Londres em 1972, um encontro juntou os dois músicos, que trocaram contactos e palavras, quem sabe se pensando já numa experiência conjunta futura. “Fiquei petrificado por ele responder que sim, e que aceitava trabalhar comigo como produtor. Eu tinha muitas ideias mas sentia-me intimidado pelo conhecimento que já tinha do trabalho que ele já havia realizado. E mesmo não havendo muito tempo a separar-nos ele tinha um enorme legado de trabalho”, reconhece David Bowie em entrevista incluída num documentário sobre a criação de Transformer. (11)

“O álbum de estreia foi um flop, então vá de fazer outro. Naqueles dias era dada essa oportunidade”, gracejaria anos depois Lou Reed nesse mesmo documentário. E a verdade é que, depois de uma discreta (e pouco marcante) estreia a solo em Lou Reed, ainda nesse mesmo 1972 os dois músicos davam por si juntos para criarem aquele que ainda hoje é reconhecido como o álbum de referência maior da discografia a solo do norte-americano: Transformer.

Reed regressa a Londres em junho (de 72), tendo o manager de Bowie Tony DeFries tentado desde logo chamar o músico à sua órbita. Lou Reed chegou a afirmar em 1973 que DeFries se fazia anunciar como seu novo manager, o que então desmentiu (12). Mas é verdade que foi Bowie quem se ofereceu para produzir o segundo álbum a solo de Reed, manifestando desde logo o seu entusiasmo ao desafiá-lo, como convidado, para participar num concerto seu no Royal Festival Hall, um evento de beneficência em defesa da proteção das baleias, causa que Reed em tempos tinha defendido.

Durante o verão Warhol tinha também proposto um trabalho a Lou Reed: a escrita de canções para um possível musical na Broadway no qual colaboraria também o designer Yves Saint Laurent. O projeto nunca avançaria para lá de um corpo inicial de intenções. Mas despertou, segundo explica Peter Doggett, o mapa temático que definiria o rumo do álbum que em breve nasceria: Reed faria canções desafiando as convenções normativas de identidade de género e abordaria também a homossexualidade. Em agosto, quando entra nos Trident Studios para gravar, Reed anuncia que trabalhará “canções de ódio”, revelando mesmo que no disco haveria “muita ambiguidade sexual e duas canções abertamente gay”, acrescentando que as apresentaria “com letras cuidadas para que os heterossexuais não compreendam todas as implicações e delas possam gostar sem se sentirem ofendidos” (13).

A noite de Nova Iorque, a cultura gay, a identidade de género, o sexo e até mesmo ecos da cultura do “laboratório” criativo de Andy Warhol passam por um alinhamento de 11 canções que cedo acabou reconhecido como uma obra-prima da música rock. Com temas como Walk On The Wild Side, Satellite of Love, Perfect Day ou o mais visceral Vicious, o disco deu a Lou Reed o seu primeiro êxito comercial. “As forças de Transformer estavam todas na superfície, que foi o que faz dele o disco ideal para 1972/73. Bowie e Ronson produziram-no com o mesmo brilho que tinham dado a Ziggy Stardust, uma personagem cuja aparência era tão importante quanto a sua mensagem. Nas suas mãos Reed transformou-se num outro Ziggy, veiculando atitudes e anedotas, como um boneco warholiano”, descreve Doggett (14). Mesmo assim, ele mesmo deixava claro que assim o fazia porque assim queria, cantando mesmo em I'm So Free “I do what I want and I want what I see” [ou seja, “faço o que quero e quero o que vejo”].

Apesar do volume invulgar de clássicos que nasceram do alinhamento do álbum, Transformer tem em Walk on the Wild Side o seu ex-líbris. Como Lou Reed contaria mais tarde, a canção foi inspirada pelo romance homónimo de Nelson Algren. Lou Reed tinha sido em tempos abordado para adaptar o livro a um musical, mas não se reconheceu na narrativa, abandonando o projeto (dele retendo apenas um título). A canção tinha já uma forma de esboço em 1971. Em Growing Up In Public recorda-se que, então, a letra estava ainda longe de focada, sugerindo nessa fase referências ao Empire State Building e à Rua 42. Talvez inspirado pela sugestão de Warhol que antecedera a criação do disco, Lou Reed levou depois à canção uma constelação de estrelas do seu universo. E assim imortaliza com música as figuras de Holly Woodlawn (“Holly came from Miami F.L.A.”, como canta logo no primeiro verso), Candy Darling (“Candy came from out on the island”, na segunda estrofe), Joe Dalessandro (“Little Joe never once gave it away”, na terceira) e Joseph Campbell (“Sugar Plum Fairy came and hit the streets”, refere mais adiante). Conta-se que Candy Darling terá mais tarde sugerido a Lou Reed gravarem um disco em conjunto, o que a sua morte precoce por um cancro (em 1974) não deixou concretizar. Holly Woodlawn, no documentário já referido sobre o álbum, esclarece que até então nunca tinha contactado de perto com Lou Reed.

Doggett defende que Walk on the Wild Side acabou como sendo pouco mais que uma caricatura, mas acrescenta que o fazia num contexto musical único que destacava as figuras para duas notas no baixo por Herbie Flowers e as vocalizações das “coloured girls” que cantavam “Doo doo doo doo doo doo doo doo doo”, em conjuntos de sete repetições que desempenhavam na estrutura da canção o equivalente a um refrão. E relata: “O que elevou a canção a um estatuto de lenda foi o facto de se ter transformado num sucesso e de ser tocada na rádio por DJ demasiado estúpidos para se aperceberem que a novidade de Lou Reed estava cheia de figuras que praticavam sexo oral e eram travestis.” (15).

Nem todas as canções tinham (e têm ainda hoje) uma interpretação ou mesmo uma construção narrativa tão evidente. Com evidente gosto em ser desconcertante perante o entrevistador, Lou Reed chegaria, anos depois, a afirmar que muitas vezes só entende verdadeiramente sobre o que fala uma canção quando a canta em frente a uma plateia. E que com os anos passou, por exemplo, a achar que Satellite of Love “fala sobre ciúme. Mas posso estar errado”, admite. E acrescenta, fulminante: “Tê-la escrito não quer dizer que eu saiba sobre o que fala.” (16)

Tematicamente o disco colocou momentaneamente Lou Reed em sintonia com os acontecimentos que faziam do movimento glam rock o que de mais entusiasmante então acontecia no Reino Unido (onde, recorde-se, o álbum fora gravado). A presença de ambiguidades na abordagem às questões de género, a abertura de horizontes à exploração de sexualidades não normativas eram apenas parte de uma carteira de identidade na alma de um disco cujas ligações musicais a Bowie e Ronson e uma capa (com uma fotografia de Mick Rock) mostrando o protagonista com sombras nos olhos vincavam afinidades evidentes com o movimento que, por esses dias, fazia de nomes como os T-Rex (de Marc Bolan) ou os Roxy Music, além de Bowie, claro, os mais visionários timoneiros de uma agitação que marcava o momento e semeava ideias que dominariam pouco depois a alma das primeiras gerações da pop dos anos 80 (em particular os que emergiam da new wave, acabando alguns rotulados sob a etiqueta 'new romantics').

Por seu lado, o início da década de 70 vivia nos EUA um momento de alguma dificuldade no relacionamento entre os ativistas pelos direitos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgénero), que tinham ganho fôlego e visibilidade após os incidentes no bar Stonewall em 1969 (17), e grupos políticos de esquerda que tinham o combate à guerra no Vietname com o uma das suas causas maiores. Growing Up In Public nota a inexistência nos EUA de então de uma figura com a mesma visibilidade de um David Bowie no Reino Unido. Doggett reconhece mesmo assim a importância que Lou Reed possa ter desempenhado e repara que, em Make Up – uma das abordagens mais evidentes ao universo gay na obra do músico – ele assimila parte do slogan da Gay Liberation Front quando canta “we're coming out/ out of our closets/ out in the streets” [que é como quem diz “estamos a sair/ a sair dos nossos armários/ a sair para a rua”, o “coming out” a que se refere tendo a leitura evidente de revelação pública da sexualidade].

Lou Reed casou-se com Betty Krondstadt após a digressão que se seguiu a Transformer. O ano tinha-lhe trazido o sucesso comercial, transformando Transformer num dos clássicos do seu tempo e fazendo de Walk on the Wild Side uma das canções mais representativas dos anos 70.

11 in Transformer - Classic Albums, DVD editado pela Eagle Rock Vision
12 in Growing Up In Public, de Peter Doggett, Omnibus Press, 1992, pág 80
13 ibidem
14 idem, pag. 81
15 idem, pág. 82
16 in Transformer - Classic Albums, DVD editado pela Eagle Rock Vision
17 Stonewall – É um nome de um histórico bar gay no Greenwich Village, em Nova Iorque. Alvo de frequentes rusgas policiais, o bar foi na noite de 28 de junho de 1968 palco de um motim quando, confrontados com nova ação policial, os clientes resolveram resistir e ripostar. Os motins que se seguiram encetaram o movimento de luta pelos direitos LGBT.