sábado, fevereiro 15, 2014

"Her": o homem e o computador (1/3)

Her - Uma História de Amor é a prova muito real das singularidades temáticas e criativas do realizador Spike Jonze: desta vez, os enigmas do comportamento humano passam pela identidade das máquinas (e por uma voz de computador...) — este texto integrava um dossier sobre o filme, no Diário de Notícias (12 Fevereiro), tendo sido publicado com o título 'O homem, o computador, a voz dele e o amor dela'.

Se outros talentos não possuísse, o cineasta americano Spike Jonze (n. 1969) poderia definir-se como um criador capaz de lidar com os temas mais desconcertantes. Afinal de contas, ele estreou-se na longa-metragem com Queres Ser John Malkovich? (1999), aventura surreal de alguém que descobria um portal para entrar na... cabeça do actor John Malkovich! Agora, com o seu novo filme Her – Uma História de Amor, Jonze encena a odisseia amarga e doce de um homem, Theodore Twombly, que se apaixona pela voz do seu computador...
Tudo se passa num futuro mais ou menos próximo em que os sistemas informáticos se tornaram omnipresentes. O certo é que Jonze aposta num registo de quase realismo, situando a existência de Twombly numa cidade de Los Angeles que conserva muitos sinais do nosso presente (mesmo se uma parte significativa dos seus cenários resulta de filmagens realizadas em Xangai).
Spike Jonze
Deparamos, assim, com um mundo paradoxal em que a proliferação de plataformas de comunicação vai a par de uma crescente solidão dos cidadãos. Twombly, precisamente, tem um trabalho que reflecte essa conjuntura: escreve cartas para pessoas com dificuldades de expressão. Ao adquirir um novo sistema operativo para o seu computador, vai passar a dialogar, literalmente, com uma voz feminina que atende todas as suas necessidades. Tudo isto, enfim, desembocando no mais inesperado romantismo: Twombly apaixona-se por “Samantha” (é esse o nome com que a voz se identifica) e, a partir de certa altura, “Samantha” corresponde ao afecto de Twombly, devolvendo-lhe o seu amor. Por um lado, a relação homem/computador evolui através dos sobressaltos de uma clássica história de amor; por outro lado, quanto mais Twombly anseia pela presença de “Samantha”, mais se intensifica o mistério da sua relação: como é que um ser humano e um sistema operativo se tocam ou entrelaçam?
Escusado será sublinhar que o filme envolveu um desafio invulgar para os actores principais: Joaquin Phoenix, compondo alguém que, afinal, passa a maior parte do tempo a dialogar com uma máquina; Scarlett Johansson, fisicamente ausente, criando apenas com a sua voz a verdade existencial da romântica “Samantha”. Para Jonze, o desafio passou também pelo facto de, pela primeira vez, assinar a solo o argumento de um filme (a ideia original surgiu há cerca de uma década, quando deparou com um artigo sobre as novas hipóteses de comunicação instantânea geradas pela inteligência artificial).
Na temporada de prémios que encerrará com os Oscars (2 de Março), o filme surge na linha da frente. Para além de diversas distinções já atribuídas por associações de críticos americanos, Jonze arrebatou o Globo de Ouro de argumento e tem uma nomeação para o Oscar de argumento original. Her – Uma História de Amor está muito bem colocado na corrida para os prémios da Academia de Hollywood, integrando o lote de nove candidatos a melhor filme de 2013. Tem ainda uma nomeação para melhor cenografia e duas na área da música: melhor banda sonora original (William Butler e Owen Pallett) e melhor canção (The Moon Song, por Karen O, vocalista da banda Yeah Yeah Yeahs).