sexta-feira, fevereiro 28, 2014

Ver + ouvir:
St. Vincent, Prince Johnny



É até agora a melhor canção que ouvimos em 2014. Prince Johnny integra o alinhamento do novo (e magnífico) disco de St. Vincent. Esta é uma versão ao vivo, captada num evento que cruzou música e moda.

Novas edições:
Vários Artistas, The Art of 12" - Volume Three"

Vários Artistas
“The Art of 12” – Volume 3”
Salvo
2 / 5

A presente série de lançamentos que assinalam os 30 anos da ZTT Records contempla a edição de um terceiro volume da série The Art of The 12”. Por razões históricas vale a pena recordar que desde cedo, e sobretudo com o trabalho de nomes como os Art of Noise, Propaganda e Frankie Goes To Hollywood, a visão de uma pop grandiosa e com alma sinfonista que Trevor Horn projetou na sua editora conheceu no formato do doze polegadas um espaço perfeito para a projeção de “telas” maiores e mais ousadas na hora de pensar como alongar ou reinventar as canções. São disso exemplo o máxi original de Dr. Mabuse dos Propaganda, a remistura de Two Tribes dos Frankie Goes To Hollywood que integrava avisos sobre a eventualidade de um conflito nuclear, a adaptação da alma do Young Person’s Guide To The Orchestra de Britten a Rage Hard também dos FGTH ou os longos ensaios sobre Moments In Love, dos Art of Noise, que surgiram em formatos de 45 rotações... Este acervo tem passado pelos volumes desta série, que assim se junta a outras que têm assegurado existência em suporte digital para edições de máxis dos oitentas nem sempre fáceis de encontrar nos dias que correm (e vale aqui a pena sublinhar que a presente nova vida do vinil é coisa mais feita no consumo de álbuns que de máxis quando se trata de focar a atenção – e as compras – em reedições). O melhor do catálogo de máxis da ZTT já conheceu devida exposição nos dois primeiros volumes desta série. O novo disco (que junta notas no booklet por Paul Morley – outro dos fundadores da ZTT e alma da sua política verbal) tem os seus melhores instantes nas versões máxi originais de Snobbery & Decay dos Act, Watching The Wildlife dos Frankie Goes To Hollywood e Close To The Edit... Além da “troika” de referência da editora (os Act foram a segunda banda de Claudia Brücken, a vocalista original dos Propaganda), o alinhamento junta peças de alguns outros nomes da memória dos oitentas (mas exteriores ao catálogo, como os Madness, Sigue Sigue Sputnik, ABC ou Belle Stars) e dos noventas insiste (e bem) nos 808 State. Há breves vinhetas dos Art of Noise e Andrew Poppy. E um rol de temas menores de nomes de segunda linha, que sublinham que, por aqui, e neste comprimento de onda, o filão já deu o seu melhor noutras ocasiões.

Óscares 2014: As escolhas na interpretação (N.G.)

Em contagem decrescente para a noite de entrega dos Óscares vamos lançando olhares e ideias sobre os nomeados. Hoje apresento escolhas pessoais nos campos da interpretação.
A primeira coisa que muitos sentimos quando chega a hora de ver os nomeados para os Óscares é reparar se aqueles a quem gostaríamos de dar as estatuetas realmente estão entre os nomes revelados. E nas categorias de interpretação deste ano há uma gritante ausência: a de Robert Redford. O seu espantoso trabalho em Quando Tudo Está Perdido, suportando todo um intenso filme sem que outra figura com ele contracene (senão o mar), faz desse seu contributo para a história cinematográfica do último ano uma das mais clamorosas faltas da lista de nomeados deste ano. Seria seu o Óscar...

Fazendo as escolhas entre os nomeados, como Melhor Atriz parece ser “pacífica” a escolha de Cate Blanchett como protagonista em Blue Jasmine, aquele que claramente se revelou como o melhor filme de Woody Allen desde Match Point.

De resto, cabe a 12 Anos Escravo de Steve McQueen o resto da colheita, nas categorias de Melhor Ator e de Ator e Atriz Secundários. Suportado por um belíssimo argumento adaptado e mostrando como se pode fazer um cinema histórico no presente, explorando um firme sentido de realismo sem filtro, 12 Anos Escravo pode não ser o meu candidato às categorias de Filme e Realização, mas na interpretação merece os prémios (sublinhando apenas que ainda não vi Nebraska, que aqui podia fazer a diferença, pelo que me é dado a entender).

Melhor Ator - Chiwetel Ejiofor (12 Anos Escravo)
Melhor Atriz - Cate Blanchett (Blue Jasmine)
Melhor Ator Secundário - Michael Fassbender (12 Anos Escravo)
Melhor Atriz Secundária - Lupita Nyong'o (12 Anos Escravo)

Para ouvir: o regresso
dos Pains of Being Pure at Heart



Os Pains of Being Pure At Heart regressam aos discos em 2014. Days of Abandon, o novo disco, chega em Abril. Aqui fica um primeiro exemplo do que ali podemos escutar.

Uma "festa" em exclusivo para o Brasil

Em várias ocasiões os Pet Shop Boys lançaram discos específicos para certos mercados. Foi o caso de Party, uma compilação expressamente criada em 2009 para lançamento no Brasil por alturas da passagem por aqueles lados da Pandemonium Tour. O alinhamento cruza tempos desde os dias de West End Girls ao (então) mais recente King of Rome, do álbum Yes, juntando sobretudo versões lançadas em single e, pontualmente, remisturas.

quinta-feira, fevereiro 27, 2014

Ver + ouvir: Cheetahs, Cut The Grass



Para descobrir os sons do álbum de estreia dos Cheetahs. Intensidade e distorção, em escola shoegazer.

Novas edições:
John Harle + Marc Almond,
The Tyburn Tree - Dark London

John Harle + Marc Almond 
“The Tyburn Tree – Dark London” 
John Harle 
3 / 5

Apesar de ter conhecido primeira exposição nos terrenos de grande visão pop eletrónica dos Soft Cell e de ter experimentado espaços de relacionamento da canção pop com a torch song e, uma vez mais, as eletrónicas em discos a solo, Marc Almond nunca foi alma de se fechar entre as quatro paredes da identidade pop. E entre as experiências desafiantes com os Mambas em inícios dos oitentas, versões de Brel ou de canções russas ou colaborações com nomes como Phoetus, Psychic TV ou Current 93, a sua obra sempre conheceu horizontes vastos e o gosto pelo sabor da descoberta. O novo álbum que edita como fruto de uma parceria com o compositor e saxofonista John Harle – a que dão por título The Tyburn Tree – Dark London – é mais um exemplo dessa rara capacidade em sair de zonas de conforto, experimentar outras linguagens e, no final, acabar com mais um episódio digno de aplauso numa obra discográfica à qual não faltam, de facto, momentos relevantes. Com textos de Almond, convocando pontualmente palavras (mais antigas) de John Dee ou William Blake, o álbum apresenta histórias e personagens de Londres (algo que cruzou já várias vezes a discografia de Almond), num percurso com um cunho narrativo que, mais que propor um ciclo de canções, desenha aqui uma ideia dramática maior mais próxima das heranças da ópera (entendida num sentido lato) e do teatro musical. Com composições lançadas em climas sombrios, que ora valorizam o melodismo do canto, ora privilegiam elaboradas cenografias, as canções caminham por ruas mal iluminadas, de noite, entre figuras medonhas e histórias arrepiantes... Plasticamente o disco acolhe pontualmente ecos de heranças das óperas rock dos setentas, embora procure mais uma fuga a esses modelos, podendo juntar-se assim ao recente Dr. Dee de Damon Albarn, como exemplo de uma nova vaga de interesse de músicos pop/rock pelos terrenos do teatro musical. Juntamente com um single recente e a notícia de um álbum de estúdio que deverá chegar no verão, este disco é um sinal da saudável agitação criativa que Marc Almond está neste momento a viver.

Afinal a música continua a vender!

O aumento de vendas de álbuns em vinil em 2013 confirma uma tendência em marcha que contraria a ideia que via a música como consumo gratuito num futuro próximo. É sobre este tema que escrevo hoje na coluna semanal no site Dinheiro Vivo.

"Mais que apenas uma tendência de consumo, o aumento progressivo de venda de discos em vinil que se tem verificado nos últimos anos reflete a afirmação de um comportamento que contraria o caminho contemporâneo para uma desmaterialização (e, de certa maneira, da banalização) da música, conferindo-lhe antes uma identidade material de objeto que se adquire, usa, quadra e não de apaga com um clic."

Podem ler aqui o texto completo.

Óscares 2014: as escolhas na escrita (N.G.)

Em contagem decrescente para a noite de entrega dos Óscares vamos lançando olhares e ideias sobre os nomeados. Hoje apresento escolhas pessoais nos campos da escrita.

As categorias de escrita são fundamentais para distinguir peças determinantes na construção de um filme. E entre os títulos que este ano surgem entre os nomeados nota-se (e parece ser mesmo uma tendência deste ano) a presença evidente de narrativas inspiradas em factos e personagens reais.

Entre os candidatos a Melhor Argumento Adaptado conta-se o trabalho de John Ridley sobre o livro de memórias de Solomon Northup, um negro norte-americano nascido livre que é raptado em 1841 e vendido a donos de plantações no Sul, onde trabalha como escravo durante 12 anos, que Steve McQueen filmou em 12 Anos Escravo.

Na categoria de Melhor Argumento Original destaca-se o belíssimo olhar sobre a solidão que Spike Jonze apresenta em Her – Uma História de Amor, onde nos fala de como a presença de um computador com inteligência artificial gera num homem recentemente separado a ilusão de um amor.

Melhor Argumento Adaptado – John Ridley em 12 Anos Escravo
Melhor Argumento Original – Spike Jonze em Her – Uma História de Amor

Para ouvir: Trust, Are We Arc?



Sons para um novo álbum do projeto Trust, a editar já na próxima semana. Aqui fica um aperitivo.

Uma canção para os Eight Wonder

Um dos primeiros exemplos de trabalho de escrita para terceiros na obra dos Pet Shop Boys chegou em 1988 com I'm Not Scared, canção composta para os Eight Wonder (a banda onde militava Patsy Kensit) que lhes deu o seu maior êxito e um momento de exposição à escala global. Os próprios Pet Shiop Boys gravaram depois uma versão desta canção para o álbum Introspective, que editaram nesse mesmo 1988.

Podem ver aqui o teledisco.

quarta-feira, fevereiro 26, 2014

Ver + ouvir:
FKA Twigs com Inc.



É uma nova canção e parece que ainda não tem título (ou pelo menos não o indicaram). Mas é resulta de uma parceria e o teledisco conta com assinatura Nick Walker e FKA Twigs.

Novas edições:
Wild Beasts, Present Tense

Wild Beasts 
“Present Tense”
Domino Records
4 / 5 

A presença no som de uma banda de um elemento sonoro mais invulgar poder transformar-se no melhor ou no pior da sua identidade e obra. E no departamento vocal a coisa por vezes torna-se particularmente notada. Se com os Sparks a voz de Russel Mael se afirmou mesmo como um dos seus mais importantes fatores de afirmação de identidade, outros casos houve em que uma postura vocal menos “habitual” se revelou antes um beco de difícil saída. Os Wild Beasts podiam ter tropeçado no seu percurso e rumado a este destino, tão evidente que parecia o focar de atenções na (invulgar) prestação vocal de Hayden Thorpe, um dos fundadores desta banda do nordeste inglês que se estreou nos álbuns em 2008 com Limbo Panto. Por essa altura a voz e a angulosidade de canções bem polidas eram ingredientes centrais na música do grupo, o percurso que se seguiu, entre os álbuns Two Dancers (2009) e Smoother (2011) mostrando tranquilos sinais de interessante evolução no plano das ideias e das formas. O novo álbum, ao qual chamaram Present Tense, representa contudo o grande salto há muito esperado. Mais claramente dominado pela presença de eletrónicas é um disco de canções pop bem estruturadas e sonicamente atentas a caminhos do presente (não confundir com a vanguarda da invenção que é, também, naturalmente , coisa do momento em que vivemos). A voz está aqui integrada entre os demais elementos plásticos que definem os novos caminhos para os sons do grupo, mais contidos na expressão de forças primordiais, mais atentos aos detalhes, ao polimento de arestas, ao distinguir do que são as traves mestras da canção e o que representa a sua cenografia (entre os elementos encontrando ordem e entendimento). O apelo algo "Philip Glassiano" dos cenários de Wonderlust (o muito promissor cartão de visita lançado há poucas semanas) cativou atenções. O alinhamento, agora (mesmo com um menor Pregnant Pause que parece mais coisa de discos anteriores que deste álbum), confirma que têm canções para suportar as expectativas lançadas. Entre as comparações já levantadas por muitas opiniões publicadas sobre este disco surgem nomes do presente como Oneohtrix Point Never ou Tim Hecker (o que vinca a noção de relação com o presente que aqui se explora. Mas não deixa de ser curioso notar como, no The Observer, se falou em Talk Talk, o que, mesmo citando uma memória dos oitentas, não deixa de fazer sentido num álbum que tanto concilia o apelo pop de um It's My Life com a afirmação clara de uma identidade não alinhada (não necessariamente os destinos estéticos) como recordamos em Spirit of Eden. Todavia, mais que viver de comparações, Present Tense é evidente expressão de uma alma própria, desenhando mais que nunca em volta dos Wild Beasts uma muito recomendável e distinta região demarcada na pop do presente.

Óscares 2014: as escolhas "técnicas" (N.G.)

Em contagem decrescente para a noite de entrega dos Óscares vamos lançando olhares e ideias sobre os nomeados. Hoje apresento escolhas pessoais nos campos habitualmente descritos como “técnicos”...

Há um claro candidato a brilhar em muitas das categorias “técnicas” para as quais está nomeado. Trata-se do belíssimo Gravidade, de Alfonso Cuarón que este ano, quem sabe, quebrará aquela má relação histórica dos Óscares com o cinema de ficção científica no que diz respeito aos prémios vistos como os mais “nobres” (leia-se realização e Melhor Filme). Verdadeiro marco na história do cinema de ficção científica e importante herdeiro de um registo realista e minimalista que tem por paradigma o mítico 2001: Odisseia no Espaço de Kubrick, Gravidade merece as distinções nas categorias de Fotografia, Montagem, Mistura de Som e Efeitos Visuais. Na verdade, o único Óscar “mal” atribuído ao filme será o da Banda Sonora, caso venha a acontecer...

Entre este pequeno mundo de muitas categorias que representam esforços técnicos e criativos sem os quais os filmes não seriam o que são, O Clube de Dallas merece vencer na caracterização, O Grande Gatsby no Guarda Roupa, Quando Tudo Está Perdido na Montagem de Som e Her – Uma História de Amor seria o grande merecedor do trabalho de Cenografia (área que se enquadra na categoria de Production Design).

Seriam estes os prémios mais justos? São as escolhas em função das nomeações. Mas não compreendo como A Essência do Amor, de Terrence Malick não surge entre os nomeados para Melhor Fotografia e Melhor Montagem quando, na verdade, foi o filme do ano passado com mais espantosos feitos nestas duas áreas.

Melhor Fotografia – Gravidade
Melhor Montagem – Gravidade
Melhor Caracterização – O Clube de Dallas 
Melhor Guarda Roupa – O Grande Gatsby
Melhor Cenografia – Her – Uma História de Amor Melhor Mistura Sonora – Gravidade
Melhor Montagem de Som – Quando Tudo Está Perdido
Melhores Efeitos Visuais – Gravidade

Para ouvir:
Greenwood e Dessner com orquestra

Johnny Greenwood (dos Radiohead) e Bryce Dessner (dos The National) estão juntos num novo disco a lançar a 3 de março, pela Deutsche Grammophon. Gravado pela Orquestra Filarmónica de Copenhaga, dirigida por André de Ridder, o disco inclui uma suite baseada na banda sonora do filme Haverá Sangue, criada por Greenwood e a peça St Carolyn By The Sea, de Dessner.

Podem ouvir aqui o disco em avanço, via Pitchfork.

Um teledisco com sabor a Kubrick

A dada altura, no teledisco (realizado por Howard Greenhalgh) que acompanhou em 1999 o tema I don't know what you want but I can't give it any more, que então servia de cartão de visita ao álbum Nightlife, víamos um quarto dominado por um chão branco, feito de luz, em clara alusão ao espaço intrigante que encontramos na sequência final de 2001: Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. Trata-se de um breve apontamento cenográfico, mas assinala mais uma entre as várias referências cinéfilas da obra dos Pet Shop Boys. A canção definia então os caminhos de um álbum onde o grupo reencontrava o centro de gravidade da sua obra (a relação da canção pop com a música de dança, juntando um trabalho notável de arranjos com cordas) e surgia no formato de single com uma versão de Je T'Aime Moi Non Plus, de Gainsbourg.

Podem ver aqui o teledisco.

terça-feira, fevereiro 25, 2014

Para ouvir:
Young Fathers, Get Up



Editaram um álbum no início do mês. Agora fica aqui o teledisco que acompanha o tema Get Up.

Novas edições:
Neneh Cherry, Blank Project

Neneh Cherry
“Blank Project”
Smalltown Supersound
4 / 5 

Na nossa relação com a música (departamento da memória) não há nada pior que aquela forma preguiçosa de evocar o que o tempo antes mostrou repetindo à exaustão sempre a mesma canção, criando uma noção de dieta da realidade que reduz as obras não apenas aos momentos de maior sucesso como, depois, sempre aos mesmos episódios. Como se outros não houvesse... Reduzir Neneh Cherry aos “sete segundos” que cantou, por alguns minutos, ao lado de Youssou N'Dour nos anos 90 é um belo exemplo de como semelhante lógica de acesso à memória gera uma visão bem errada de quem temos pela nossa frente. E ao regressar aos discos em nome próprio após um hiato de 18 anos, essa canção que conheceu projeção global deve ser um dos cantos das obra da cantora ao qual este reencontro não prestou atenção. Longe de ser um álbum de síntese de etapas anteriores ou mesmo um retomar de pontas (eventualmente) soltas, Blank Project é um disco que procura um recomeço num patamar onde a voz, a firmeza de uma identidade política e uma segurança na capacidade de falar do “eu” se entendem essencialmente com eletrónicas, sob ecos distantes de relacionamentos de outrora com o hip hop, a pop (escute-se a preciosa colaboração com Robyn em Out of the Black) e até mesmo os espaços do pós-punk pelos quais se aventurou em percursos ainda mais remotos. Mais que procurar ajustes de contas ou entendimentos com o passado, o regresso aos discos de Neneh Cherry é coisa com sabor ao seu aqui e agora. Produzido por Kieran Hebden (do projeto Four Tet), o disco assenta as canções sobre uma rede minimalista de acontecimentos sonoros essencialmente feitos de relacionamentos com estruturas rítmicas e sonoridades eletrónicas (há exceções, como a incursão por guitarras de alma pós-punk em Weightless). Distante também da experiência jazzística do mais recente The Cherry Thing (de 2012), mas aceitando ensinamentos colhidos nessa experiência, o novo disco representa o mais interessante momento da obra da cantora desde o histórico Raw Like Sushi, de 1988, onde então a ouvíamos a cantar Buffalo Stance ou Manchild. Este Blank Project pode parecer uma tela de alguém que procura novas tinhas e, com elas, novas formas. Lembrando um pouco as demandas para voz e eletrónicas de uma Nicolette ou Dana Bryant nos noventas, este é, talvez antes mesmo de uma meta, um bom ensaio de caminhos, sendo certo que o faz com palavras seguras e ideias firmes (explorando temáticas de identidade de género e, sobretudo, uma visão do feminino que não é decretada por uma agenda masculina). Este é um regresso que pede atenção e exige algum esforço na audição. Mas que se revela o primeiro grande reencontro de 2014. Seja bem regressada, Neneh Cherry.

Óscares 2014: as escolhas na música (N.G.)

Em contagem decrescente para a noite de entrega dos Óscares vamos lançando olhares e ideias sobre os nomeados. Hoje apresento escolhas pessoais nos campos da música... 

É verdade que costumo dizer que a Academia é dura de ouvido. E são raras as vezes em que chegam à lista das nomeadas as melhores bandas sonoras e canções criadas no ano anterior ao serviço do cinema... Veja-se o caso deste ano: onde estão as bandas sonoras originais que Max Richter e Hanan Townshend assinaram respetivamente para Lore de Cate Shortland ou A Essência do Amor, de Terrence Malick? Foram as duas melhores bandas sonoras de 2013 e, na hora de escolher nomeadas, nicles...

Entre os nomeados para este ano estão contudo as importantes contribuições musicais para Her – Uma História de Amor, de Spike Jonze. O score instrumental é uma criação conjunta de Win Butler (dos Arcade Fire) com Owen Pallett e contou com os próprios Arcade Fire como instrumentistas (citando até alguns momentos do mais recente Reflektor). Spike Jonze (que tem mais extensa obra nos telediscos que no cinema) esta representou assim mais uma colaboração com os Arcade Fire, com os quais tinha já trabalhado em The Suburbs e, mais recentemente, em Afterlife. Para os músicos esta foi uma primeira (e bem sucedida) experiência no cinema (até mesmo para Owen Pallett, que tem assinado arranjos de cordas para inúmeros discos e contava já com trabalhos em algumas curtas e títulos de menor visibilidade e aqui tem a sua primeira produção de grande escala).

Win e Owen têm como mais forte concorrente a música que Steven Price criou para Gravidade que, contudo, representa um dos piores ingredientes do belíssimo filme de Alfonso Cuarón. Os experientes John Williams, Alexandre Desplat e Thomas Newman estão também nomeados, mas com trabalhos menos interessantes que outros que outrora nos mostraram já.

Na categoria de Melhor Canção Original destaca-se também Her, desta vez com The Moon Song, da autoria de Karen O e do próprio Spike Jonze, que a vocalista dos Yeah Yeah Yeahs canta em dueto com Ezra Koenig, dos Vampire Weekend.

Melhor Banda Sonora Original – Win Butler e Owen Pallett em 'Her – Uma História de Amor'
Melhor Canção – 'The Moon Song', de Karen O e Spike Jonze em 'Her – Uma História de Amor'

Para ouvir: Junip, Walking Lightly



São suecos e deixam-se animar pelas memórias do psicadelismo e por teclados mais recentes... O disco é de 2013. Ou só se podem ouvir coisas acabadas de sair do forno?

A história de West End Girls (2)

Continuamos a publicação (em episódios) de um longo artigo sobre a canção West End Girls, que há 30 anos assinalou o inicio da sua atividade discográfica. O texto foi originalmente publicado no suplemento Qi, do DN, som o título 'Retrato Urbano na forma de uma Canção'

West End Girls começou como um rap inspirado pelo clássico The Message de Grandmaster Flash, um dos discos pioneiros da cultura hip hop, editado em 1982. “Gostava daquela ideia da pressão de viver numa cidade moderna, e decidi fazer um rap que pudesse funcionar num sotaque inglês sobre uma música que o Chris e eu tínhamos composto no estúdio de Ray Roberts em Camden”, recorda Neil Tennant nas notas incluídas na reedição de 2001 de Please, o álbum de estreia. Neil reconhece que a música de base com a qual estavam inicialmente a trabalhar não era particularmente interessante, mas juntava a dada altura a presença de um solo de piano num Rhodes, criando uma sonoridade que na época os entusiasmava.

A ideia para este rap começou a ganhar forma numa altura em que Neil estava em casa de um primo seu, nos arredores de Nottingham. “Tínhamos ficado a ver um daqueles filmes de gangsters ao estilo dos de James Cagney na televisão e deitei-me por volta da uma da manhã. Estava a dormir no quarto de um dos filhos dele, numa cama pequena, e por alguma razão o verso “Sometimes you’re better off dead / There’s gun in your hand and it’s pointing at your head” surgiu na minha cabeça, recorda no mesmo texto. Levantou-se e escreveu aquelas palavras num pedaço de papel, juntamente com os dois versos seguintes. Pouco depois, numa noite já de regresso aos seu apartamento em King’s Road, deitou-se no chão e escreveu praticamente toda a letra, salvo o verso final. No dia seguinte, no estúdio em Camden propôs que gravassem aquele rap que tinha criado. E só a dias de viajar para Nova Iorque, onde encontraria Bobby O, escreveram um instrumental mais completo, com Neil ao piano e Chris nos restantes teclados.
A música começou a ganhar forma com uma mudança de acorde que Neil tinha imaginado há já alguns anos e à qual Chris juntou a linha de baixo. Levou a fita para casa e sentiu que podia cantar o rap que tinha escrito sob o que haviam criado e que podia cantar uma melodia no refrão e depois ter as palavras "West End Girls" sobre a linha de baixo. Escreveu então o verso final, novamente no chão do seu apartamento e pouco depois estavam a gravar uma primeira maqueta.

Mais tarde, já em estúdio, com Bobby O, com o produtor por detrás dos teclados, Neil sugeriu a Chris que fizessem “aquele rap”. E esse foi o primeiro momento em que o cantou para outros. O engenheiro de som naquela sessão Steve Jerome, tinha criado Popcorn, um dos primeiros êxitos pop criado com eletrónicas. Um dia depois Bobby O fez overdubs onde, descreve Neil Tennant, nas notas do álbum, juntou sons de batidas do Let’s Dance de David Bowie, tocando-os ao vivo num Emulator (5). E desde logo um dos sons de que mais gostaram no instrumento foi aquele em que replica a sonoridade de um coro de canto gregoriano que, sublinha Chris, os New Order já tinham usado em Blue Monday. Logo nessa sessão, acrescenta Neil, o técnico lhe disse que a sua voz era fácil de ouvir.

West End Girls surgiu assim como a primeira expressão pública do relacionamento dos dois músicos britânicos com o produtor norte-americano. Semanas depois, em junho de 1984, o single One More Chance assinalava um segundo episódio, creditado a Neil Tennant e Bobby O, uma vez que o tema cresceu de um fundo instrumental originalmente criado para Divine, com o título Rock Me.
Sem resultados visíveis, a relação de trabalho com Bobby O foi-se contudo degradando. “O problema com Bobby O não foi o contrato, mas uma relação de trabalho que não funcionou”, descreve Neil Tennant em Literally. Começaram por trabalhar num estúdio de 24 pistas mas depois estavam subitamente a trabalhar apenas com gravadores de 8 pistas no seu escritório. Iam, como diz Neil, de cavalo para burro, notando que o produtor estava a poupar dinheiro, pelo que começaram a duvidar da fé que teria no grupo, sublinhando, no livro, que nunca ganharam um tostão com a versão original de West End Girls que, acrescenta, terá atingido vendas na ordem do milhão. Quando se afastaram de Bobby O concederam-lhe esses ganhos, assim como cederam um royalty nos três primeiros álbuns que editaram pela EMI. Imaginaram assim um teto máximo de um milhão de dólares, mal imaginando contudo que seriam de facto tão bem sucedidos. “Para ser honesto acho que o Bobby O mereceu o milhão que ganhou. Dada a figura que ela ele arriscou mesmo muito por nós. Muitas outras pessoas não teriam feito nada”, defende Neil (6).

(5) Emulator – Nome dado a uma série de teclados digitais com samplers que armazenavam informação em disquettes.
(6) in Literally, de Chris Heath (Penguin, 1990), pag. 103

segunda-feira, fevereiro 24, 2014

Ver + ouvir: Cut Copy, We Are Explorers



Ainda os sons do álbum do ano passado dos Cut Copy, num teledisco criado com assinatura conjunta Masa Kawamura, Aramique e Qanta Shimuzu.

Novas edições:
Beck, Morning Phase

Beck
“Morning Phase”
Capitol / Universal
5 / 5 

Foi há vinte anos que, num tempo em que os espaços do pop/rock alternativo alcançavam novos patamares de visibilidade (em grande parte como consequência do sucesso de nomes como os Nirvana ou Pearl Jam), um jovem californiano de cabelos loiros e 24 anos registados no passaporte cativava atenções com Loser, canção do álbum Mellow Gold que rapidamente se afirmaria como um dos hinos do seu tempo. Aclamado (inclusivamente nos Grammys) com o posterior Oldelay (disco de 1996 que procurava pontes entre as linguagens pop/rock, a cultura hip hop e as novas estéticas de corte e colagem), Beck afirmou-se de então para cá como um dos mais versáteis e inspirados cantautores da sua geração. Assinou em 2002, em Sea Change, a sua obra-prima num disco de alma melancólica, herdeiro das ideias de um Nick Drake e de um Scott Walker. E agora, seis anos depois de um silêncio nos discos, regressa com um sucessor direto desse mesmo álbum.

Antes do Loser com que muitos o descobrimos em 1994 tinha já editado os menos visíveis Golden Feelings (cassete de 1993) e Stereopathetic Soulmanure (1994). E depois do seu período mais inspirado - que além de Mellow Gold, Odelay e Sea Change inclui ainda os discos Mutations (1998) e Midnite Vultures (1999) - entrou num período de demandas desafiantes, todavia com colheitas menos exuberantes, dessa etapa nascendo discos menos marcantes como Guero (2005), The Information (2006) e Modern Guilt (2008). Depois desse último registo de originais, lançado há seis anos, a vida musical de Beck seguiu opções diferentes das rotinas habituais. E em parte devido a problemas de saúde (como aludiu recentemente a NPR), em vez dos discos e dos concertos passou antes a escrever para outros músicos. Produziu discos (de Charlotte Gainsbourg a Philip Glass, passando por Thurston Moore) e encetou uma série de sessões especiais com músicos convidados com os quais, no seu estúdio em Malibu, promoveu a gravação de versões de álbuns integrais de figuras como Leonard Cohen, Velvet Undergroun ou os INXS, tendo como regra fundamental o facto de cada sessão decorrer no espaço de apenas um dia. Em 2012 foi ainda mais ousado ao apresentar Song Reader, um "álbum" de novas canções que, em vez de gravadas, lançou apenas como partituras (como se fazia antes da era dos discos).

Morning Phase, o seu 12.º álbum de estúdio é um espaço de reencontros, por um lado devolvendo-o a um terreno mais "tradicional" de apresentação de novas criações, por outro retomando diretamente o clima e as sonoridades do belíssimo Sea Change. Beck tinha tentado gravar este disco em 2005, em Nashville, mas deixara o projeto incompleto. Agora, e reunindo em Los Angeles, no mesmo espaço onde Sinatra em tempos trabalhou, alguns dos músicos com os quais gravou esse disco de 2002 (assumindo contudo ele mesmo a produção), entregando novamente os arranjos de cordas ao seu pai (David R. Campbell), Beck apresenta-nos não só o seu melhor álbum desde Sea Change como um dos melhores da sua obra. As referências são clássicas, apontando a figuras maiores como Nick Drake ou os Crosby, Stills, Nash & Young, com momento mais inspirado no esmagadoramente belo Wave onde a voz de Beck acaba rodeada pelo som de uma orquestra, sugerindo climas não muito distantes da obra de Scott Walker.

Este é um disco de canções de recorte clássico, dominadas pela presença da guitarra acústica e da orquestra. Morning Phase é um álbum coerente nas formas e de climas marcados pela melancolia. Um perfeito disco de inverno.

PS. Este texto é uma versão editada (e acrescentada de um outro publicado na edição de 23 de fevereiro no DN com o título 'Melancolia de inverno no novo álbum de Beck').

A quem dava este ano os Óscares?

Em tempo de contagem decrescente para a noite de entrega dos Oscares o Sound + Vision retoma uma das suas tradições e abre aos leitores um espaço de votação. Como sempre podem-nos ajudar a escolher os vencedores votando na coluna lateral do blogue. Os resultados serão aqui publicados no dia 2, horas antes de sabermos quem serão os vencedores em Hollywood. Aqui fica a lista das categorias que colocamos a votos:

Melhor Filme
Melhor Realizador
Melhor Ator
Melhor Atriz
Melhor Ator Secundário
Melhor Atriz Secundária
Melhor Argumento Adaptado
Melhor Argumento Original
Melhor Banda Sonora
Melhor Canção
Melhor Filme Estrangeiro
Melhor Animação (longa-metragem)

Para ler: Óscares e aeroportos na 'Time'

É sempre recomendável a leitura da Time na semana que antecede os Óscares, até porque habitualmente a revista nos apresenta formas imaginativas de antecipar as premiações. Além das escolhas, o dossier Óscares deste ano junta um panorama sobre os candidatos a Melhor Filme, notando a presença dominante de histórias reais sobre a ficção entre os nove títulos que este ano estão a concurso. Há ainda um perfil de Lupita Nyong'o, a favorita à categoria de Melhor Atriz Secundária pelo seu desempenho em 12 Anos Escravo. A fechar o dossier há uma tabela que analisa, filme a filme, a presença de alguns elementos-chave como infidelidade, racismo, cowboys, nudez, flashback, voz off, murros na cara, narrativa não linear ou as presenças das cidades de Nova Iorque, Washington ou de uma pequena cidade... A análise percorre os nove candidatos a Melhor Filme deste ano e recorda os vencedores desde 1970.

Haverá aqui tendências? Histórias de infidelidade e de ciúme foram as mais frequentes. Médicos e polícias as profissões mais evidenciadas. Mais nudez feminina que masculina. Há muitos vencedores sem créditos na abertura dos filmes e flashbacks quanto baste... Nova Iorque bate Washinton aos pontos.

Apesar deste foco imperdível, o grande artigo desta edição da Time é o que lha dá a capa: um olhar de bastidores sobre o sistema que hoje gere os cancelamentos de vôos em aeroportos norte-americanos. Este janeiro viu números recorde de cancelamentos, sobretudo devido a condições meteorológicas adversas. O que dita então um cancelamento, num mapa de acontecimentos de vôos com ligações, não apenas para tripulantes como para as tripulações (que precisam de estar neste ou naquele aeroporto a hora tal para assegurar outros vôos)... Quem tem prioridade sobre quem na hora de escolher qual ou quais os vôos que é preciso cancelar? O artigo mostra a rede de informações e profissionais que tomam as decisões. Vôos internacionais são prioritários sobre os domédticos. Grandes aeroportos mostram hipóteses de remarcação mais fáceis. E quem está mais sujeito a sofrer cancelamentos: o passageiro ou o tripulante. Vale mesmo a pena ler.

E o melhor álbum dos Pet Shop Boys é...

Behaviour! Ao longo da última semana pedimos aos leitores do Sound + Vision que escolhessem qual era o seu preferido entre os álbuns de estúdio dos Pet Shop Boys. O vencedor é Behaviour, disco de 1990 essencialmente dominado por baladas e elegantes canções mid tempo que, de certa forma, se destaca (pela diferença) da demais discografia do duo. Curiosamente Elysium, disco de 2012 que se aproxima do registo deste álbum de 1990, surgiu destacado em quarto lugar, afirmando-se assim como o melhor álbum do grupo nos últimos 20 anos! Aqui fica a tabela com a ordenação final das escolhas dos leitores:

1º Behaviour – 25%
2º Actually – 17%
3º Very – 16%
4º Elysium – 12%
5º Please – 8%
6º Bilingual – 6%
7º Yes – 4%
8º Introspective, Nighlife e Fundamental – 2%
9º Electric – 1%
10º Release – 0%

(O álbum Release não obteve qualquer votação)

domingo, fevereiro 23, 2014

Bieke Depoorter: famílias egípcias

Integrando a agência Magnum desde 2012, por nomeação (primeira fase de uma relação de trabalho que poderá conduzir à condição de membro associado), a fotógrafa belga Bieke Depoorter (25 anos) tem-se distinguido por uma invulgar capacidade de dar a ver a complexidade de gestos e humores dos espaços familiares — exemplo: a série ‘I Am About To Call It A Day’, sobre famílias norte-americanas. Ultimamente, tem viajado pelo Egipto, mantendo o mesmo olhar metódico e obsessivo, pressentido nas rotinas do quotidiano algumas convulsões da história colectiva, sempre com atenta ternura pelas personagens das crianças — o seu porfolio egípcio, 'In Between', pode ser visto no site da Magnum.

Música de "O Lobo de Wall Street" (6)


[ The Lemonheads ]  [ Eartha Kitt ]  [ Bo Diddley ]  [ Cannonball Adderley ]  [ Malcolm McLaren ]

A acutilância histórica de Martin Scorsese não tem nada a ver com a sobrecarga "simbólica" das mais vulgares reconstituições históricas. Quer isto dizer que ele sabe expor a complexidade de linguagens de uma determinada época, recusando qualquer moralismo televisivo que oponha "alta" e "baixa" cultura, convocando com a mesma serenidade o génio dos grandes autores e a frivolidade triunfante do kitsch. Eis um esclarecedor exemplo desta última vertente: a evocação de Gloria, enorme hit de Laura Braningan no começo dos anos 80, mas através do seu criador original, o italiano Umberto Tozzi — na sua cândida exuberância, o video parece ser uma derivação formal de um típico Festival da Eurovisão.

O melodrama segundo Jason Reitman (2/2)

Autor de filmes cuja sedução começa na sua condição "fora-de-moda", Jason Reitman propõe, agora, uma bela variação melodramática — este texto integrava um dossier sobre o filme Um Segredo do Passado, publicado no Diário de Notícias (14 Fevereiro).

[ 1 ]

Não sei se Jason Reitman alguma vez se exprimiu publicamente sobre um mestre do classicismo de Hollywood como Jacques Tourneur (1904-1977). Escusado será dizer que ignoro também se, por alguma razão, ele considera Tourneur uma referência inspiradora. Não quero, por isso, sugerir qualquer determinismo estético, quanto mais não seja porque cada um deles é indissociável de um muito específico contexto de produção. Ainda assim, creio que não será abusivo considerar que existe uma ponte simbólica entre o novo e fascinante filme de Reitman, Um Segredo do Passado, e um certo romanesco clássico de que Tourneur foi, justamente, um dos expoentes máximos.
De facto, a inserção de Tourneur na tradição do cinema de terror — através de títulos de culto como A Pantera (1942) ou Zombie [trailer] (1943) — tende a escamotear a componente onírica que perpassa nos seus grandes filmes, mesmo os que apostam em elementos mais “realistas”. Penso, por exemplo, em títulos como O Arrependido (1947) ou Estrelas da Minha Coroa (1950) que, a partir de clichés da época (a relação com uma mulher fatal ou o desenlace da Guerra Civil, respectivamente), criavam um ambiente de inquietante instabilidade, desafiando as fronteiras da própria realidade.


São memórias clássicas que Um Segredo do Passado parece prolongar. O seu bizarro trio — uma mulher, o seu filho e um homem que fugiu da prisão — envolve uma ambígua nostalgia da unidade familiar que, ao contrário do cinismo do nosso tempo, não teme a hipótese de um desenlace emocionalmente gratificante. Por alguma razão, esta é uma história narrada pela personagem do filho — neste tempo em que prolifera uma imagem fútil e irresponsável da “juventude”, é bom encontrar um filme cujo motor dramático é o amor pela mãe.

A memória, segundo Max Richter


No último ano ouvimo-lo nas bandas sonoras de filmes marcantes como Lore de Cate Shortland ou Desligados de Henry-Alex Rubin e brevemente será sua a música que vamos encontrar em The Last Days on Mars. A intensa agenda de trabalho que o alemão Max Richter tem hoje no mundo do cinema parece tomar parte significativa do seu tempo e passaram já dois anos desde que assinou um dos mais bem sucedidos títulos da série Re-Composed, da editora Deutsche Grammophon, operando então uma sucessão de transformações sobre As Quatro Estações, de Vivaldi. Antigo elemento do grupo Piano Circus, com o qual encetou a sua discografia, Max Richter herdou claramente para a sua música elementos e referencias de compositores como Arvo Pärt, Michael Nyman ou Philip Glass, que faziam parte do repertório desse coletivo a que pertenceu anos a fio, depois de ter terminando os seus estudos. Foi da assimilação dessas vivências e da demanda por uma “voz” pessoal que nasceu, em 2002, um primeiro álbum assinado em nome próprio, ao qual chamou Memoryhouse. Agora, 12 anos depois, uma reedição devolve esse disco megnífico aos escaparates das novidades, num tempo em que a sua obra discográfca entretanto juntou títulos como The Blue Notebooks (2004), Songs From Before (2006), 24 Postcards in Full Colour (2008) e Infra (2010) e a sua presença no cinema passou já por filmes como Valsa Com Bashir de Ari Folman ou Imperdoáveis, de André Techiné, a sua obra tendo também conhecido já experiências nos campos da ópera e merecido a atenção do MoMA, em Nova Iorque. Memoryhouse – que desde a sua edição em 2002 teve utilização na série documental da BBC Auschwitz: The Nazis and The Final Solution e num dos dois trailers de A Essência do Amor, de Terrence Malick (que concretamente usou o tema November) – representou um momento de afirmação de um caminho tão capaz de mostrar atenção pelas novas formas e tecnologias como ser herdeiro de tradições de outros tempos. Houve quem usasse o termo neoclássico para descrever um disco essencialmente feito de peças instrumentais orquestrais, pontualmente acolhendo a presença de vozes gravadas e também de texturas e outros discretos elementos electrónicos. É um disco que cruza a realidade e a ficção, as várias faixas que apresenta correspondendo ora a reflexos de situações reais ora a ecos da imaginação. Doze anos depois Memoryhouse revela claramente a porta para um mundo que, entretanto, Max Richter aprofundou e desenvolveu. Mas convenhamos que não podia ter começado de melhor maneira.

Lou Reed em quatro álbuns (2)

Este texto é um excerto de um artigo sobre Lou Reed publicado em inícios de janeiro no suplemento Q. do DN com o título: O legado imortal do poeta da cultura rock'n'roll.

O culto pelos Velvet Underground nasceu, de certa maneira, do entusiasmo de David Bowie. Quem o defende é Peter Doggett, que em Growing Up In Public recorda como o cantor britânico seguia os Velvet Underground com entusiasmo desde 1967 e que, numa altura em que a música do grupo americano não era ainda presença regular no Reino Unido, já Bowie tocava algumas das suas canções em palco, ora citando Venus in Furs no seu Little Toy Soldier ou mesmo através de versões de Waiting for the Man ou White Light/White Heat (que chegou a levar a uma sessão na BBC). E quando Reed visitou Londres em 1972, um encontro juntou os dois músicos, que trocaram contactos e palavras, quem sabe se pensando já numa experiência conjunta futura. “Fiquei petrificado por ele responder que sim, e que aceitava trabalhar comigo como produtor. Eu tinha muitas ideias mas sentia-me intimidado pelo conhecimento que já tinha do trabalho que ele já havia realizado. E mesmo não havendo muito tempo a separar-nos ele tinha um enorme legado de trabalho”, reconhece David Bowie em entrevista incluída num documentário sobre a criação de Transformer. (11)

“O álbum de estreia foi um flop, então vá de fazer outro. Naqueles dias era dada essa oportunidade”, gracejaria anos depois Lou Reed nesse mesmo documentário. E a verdade é que, depois de uma discreta (e pouco marcante) estreia a solo em Lou Reed, ainda nesse mesmo 1972 os dois músicos davam por si juntos para criarem aquele que ainda hoje é reconhecido como o álbum de referência maior da discografia a solo do norte-americano: Transformer.

Reed regressa a Londres em junho (de 72), tendo o manager de Bowie Tony DeFries tentado desde logo chamar o músico à sua órbita. Lou Reed chegou a afirmar em 1973 que DeFries se fazia anunciar como seu novo manager, o que então desmentiu (12). Mas é verdade que foi Bowie quem se ofereceu para produzir o segundo álbum a solo de Reed, manifestando desde logo o seu entusiasmo ao desafiá-lo, como convidado, para participar num concerto seu no Royal Festival Hall, um evento de beneficência em defesa da proteção das baleias, causa que Reed em tempos tinha defendido.

Durante o verão Warhol tinha também proposto um trabalho a Lou Reed: a escrita de canções para um possível musical na Broadway no qual colaboraria também o designer Yves Saint Laurent. O projeto nunca avançaria para lá de um corpo inicial de intenções. Mas despertou, segundo explica Peter Doggett, o mapa temático que definiria o rumo do álbum que em breve nasceria: Reed faria canções desafiando as convenções normativas de identidade de género e abordaria também a homossexualidade. Em agosto, quando entra nos Trident Studios para gravar, Reed anuncia que trabalhará “canções de ódio”, revelando mesmo que no disco haveria “muita ambiguidade sexual e duas canções abertamente gay”, acrescentando que as apresentaria “com letras cuidadas para que os heterossexuais não compreendam todas as implicações e delas possam gostar sem se sentirem ofendidos” (13).

A noite de Nova Iorque, a cultura gay, a identidade de género, o sexo e até mesmo ecos da cultura do “laboratório” criativo de Andy Warhol passam por um alinhamento de 11 canções que cedo acabou reconhecido como uma obra-prima da música rock. Com temas como Walk On The Wild Side, Satellite of Love, Perfect Day ou o mais visceral Vicious, o disco deu a Lou Reed o seu primeiro êxito comercial. “As forças de Transformer estavam todas na superfície, que foi o que faz dele o disco ideal para 1972/73. Bowie e Ronson produziram-no com o mesmo brilho que tinham dado a Ziggy Stardust, uma personagem cuja aparência era tão importante quanto a sua mensagem. Nas suas mãos Reed transformou-se num outro Ziggy, veiculando atitudes e anedotas, como um boneco warholiano”, descreve Doggett (14). Mesmo assim, ele mesmo deixava claro que assim o fazia porque assim queria, cantando mesmo em I'm So Free “I do what I want and I want what I see” [ou seja, “faço o que quero e quero o que vejo”].

Apesar do volume invulgar de clássicos que nasceram do alinhamento do álbum, Transformer tem em Walk on the Wild Side o seu ex-líbris. Como Lou Reed contaria mais tarde, a canção foi inspirada pelo romance homónimo de Nelson Algren. Lou Reed tinha sido em tempos abordado para adaptar o livro a um musical, mas não se reconheceu na narrativa, abandonando o projeto (dele retendo apenas um título). A canção tinha já uma forma de esboço em 1971. Em Growing Up In Public recorda-se que, então, a letra estava ainda longe de focada, sugerindo nessa fase referências ao Empire State Building e à Rua 42. Talvez inspirado pela sugestão de Warhol que antecedera a criação do disco, Lou Reed levou depois à canção uma constelação de estrelas do seu universo. E assim imortaliza com música as figuras de Holly Woodlawn (“Holly came from Miami F.L.A.”, como canta logo no primeiro verso), Candy Darling (“Candy came from out on the island”, na segunda estrofe), Joe Dalessandro (“Little Joe never once gave it away”, na terceira) e Joseph Campbell (“Sugar Plum Fairy came and hit the streets”, refere mais adiante). Conta-se que Candy Darling terá mais tarde sugerido a Lou Reed gravarem um disco em conjunto, o que a sua morte precoce por um cancro (em 1974) não deixou concretizar. Holly Woodlawn, no documentário já referido sobre o álbum, esclarece que até então nunca tinha contactado de perto com Lou Reed.

Doggett defende que Walk on the Wild Side acabou como sendo pouco mais que uma caricatura, mas acrescenta que o fazia num contexto musical único que destacava as figuras para duas notas no baixo por Herbie Flowers e as vocalizações das “coloured girls” que cantavam “Doo doo doo doo doo doo doo doo doo”, em conjuntos de sete repetições que desempenhavam na estrutura da canção o equivalente a um refrão. E relata: “O que elevou a canção a um estatuto de lenda foi o facto de se ter transformado num sucesso e de ser tocada na rádio por DJ demasiado estúpidos para se aperceberem que a novidade de Lou Reed estava cheia de figuras que praticavam sexo oral e eram travestis.” (15).

Nem todas as canções tinham (e têm ainda hoje) uma interpretação ou mesmo uma construção narrativa tão evidente. Com evidente gosto em ser desconcertante perante o entrevistador, Lou Reed chegaria, anos depois, a afirmar que muitas vezes só entende verdadeiramente sobre o que fala uma canção quando a canta em frente a uma plateia. E que com os anos passou, por exemplo, a achar que Satellite of Love “fala sobre ciúme. Mas posso estar errado”, admite. E acrescenta, fulminante: “Tê-la escrito não quer dizer que eu saiba sobre o que fala.” (16)

Tematicamente o disco colocou momentaneamente Lou Reed em sintonia com os acontecimentos que faziam do movimento glam rock o que de mais entusiasmante então acontecia no Reino Unido (onde, recorde-se, o álbum fora gravado). A presença de ambiguidades na abordagem às questões de género, a abertura de horizontes à exploração de sexualidades não normativas eram apenas parte de uma carteira de identidade na alma de um disco cujas ligações musicais a Bowie e Ronson e uma capa (com uma fotografia de Mick Rock) mostrando o protagonista com sombras nos olhos vincavam afinidades evidentes com o movimento que, por esses dias, fazia de nomes como os T-Rex (de Marc Bolan) ou os Roxy Music, além de Bowie, claro, os mais visionários timoneiros de uma agitação que marcava o momento e semeava ideias que dominariam pouco depois a alma das primeiras gerações da pop dos anos 80 (em particular os que emergiam da new wave, acabando alguns rotulados sob a etiqueta 'new romantics').

Por seu lado, o início da década de 70 vivia nos EUA um momento de alguma dificuldade no relacionamento entre os ativistas pelos direitos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgénero), que tinham ganho fôlego e visibilidade após os incidentes no bar Stonewall em 1969 (17), e grupos políticos de esquerda que tinham o combate à guerra no Vietname com o uma das suas causas maiores. Growing Up In Public nota a inexistência nos EUA de então de uma figura com a mesma visibilidade de um David Bowie no Reino Unido. Doggett reconhece mesmo assim a importância que Lou Reed possa ter desempenhado e repara que, em Make Up – uma das abordagens mais evidentes ao universo gay na obra do músico – ele assimila parte do slogan da Gay Liberation Front quando canta “we're coming out/ out of our closets/ out in the streets” [que é como quem diz “estamos a sair/ a sair dos nossos armários/ a sair para a rua”, o “coming out” a que se refere tendo a leitura evidente de revelação pública da sexualidade].

Lou Reed casou-se com Betty Krondstadt após a digressão que se seguiu a Transformer. O ano tinha-lhe trazido o sucesso comercial, transformando Transformer num dos clássicos do seu tempo e fazendo de Walk on the Wild Side uma das canções mais representativas dos anos 70.

11 in Transformer - Classic Albums, DVD editado pela Eagle Rock Vision
12 in Growing Up In Public, de Peter Doggett, Omnibus Press, 1992, pág 80
13 ibidem
14 idem, pag. 81
15 idem, pág. 82
16 in Transformer - Classic Albums, DVD editado pela Eagle Rock Vision
17 Stonewall – É um nome de um histórico bar gay no Greenwich Village, em Nova Iorque. Alvo de frequentes rusgas policiais, o bar foi na noite de 28 de junho de 1968 palco de um motim quando, confrontados com nova ação policial, os clientes resolveram resistir e ripostar. Os motins que se seguiram encetaram o movimento de luta pelos direitos LGBT.

David Bowie a 45 RPM (50)


Admirador de Weil e Brecht, Bowie integrou uma versão de Alabama Song no alinhamento da digressão Isolar que partira para a estrada depois do lançamento dos álbuns Low e Herores, ambos de 1977. Levou depois essa mesma versão a estúdio, gravando-a e lançando-a no formato de single em 1980, juntando uma versão acústica do clássico Space Oddity. Esta seria a primeira de duas edições centradas nestes dois grandes autores que levaria a disco na alvorada dos anos 80.