sábado, janeiro 11, 2014

Wall Street por Scorsese (1/2)

Admirável cineasta! Dezoito anos depois do seu Casino, Martin Scorsese dirige Leonardo DiCaprio para voltar a desmontar os circuitos do dinheiro em O Lobo de Wall Street — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Janeiro), com o título 'O dinheiro e outras drogas segundo Scorsese'.

Nem sempre associamos o nome de Martin Scorsese à dimensão de um cineasta histórico, ou melhor, interessado na história do seu país. Mas é um facto que, se percorrermos a sua filmografia, não podemos deixar de reconhecer que nela perpassa toda uma visão crítica e apaixonada em que a história se entrelaça com a mitologia, ao mesmo tempo que o realismo não é estranho às convulsões da tragédia. Assim, por exemplo: New York, New York (1977), sob a capa de um melodrama musical, apresenta uma visão nada triunfalista da América do final da Segunda Guerra Mundial; A Idade da Inocência (1993) desmonta as ilusões e desilusões da alta sociedade novaiorquina na segunda metade do séc. XIX; enfim, Gangs de Nova Iorque (2002) revisita as origens violentas da grande metrópole.
Com o seu novo filme, O Lobo de Wall Street, o menos que se pode dizer é que Scorsese se mantém fiel a si próprio. Que é como quem diz: estamos perante um retrato vertiginoso da América do dinheiro (e do poder do dinheiro), de novo remetendo-nos para a sua bem amada Nova Iorque e, como o título esclarece, para as convulsões financeiras de Wall Street.
Nesta perspectiva, O Lobo de Wall Street não pode deixar de ser aproximado de Casino (1995), outro filme de Scorsese em que a circulação do dinheiro era um fundamental motor da acção (neste caso, na década de 70, nos casinos de Las Vegas controlados pela Mafia). Em Casino, no entanto, a personagem central, interpretada por Robert De Niro, surgia como a reconversão de uma figura verídica, aliás com um nome diferente. Agora, o Jordan Belfort interpretado por Leonardo DiCaprio refere-se ao verdadeiro Jordan Belfort, corretor da firma Stratton Oakmont (Long Island, Nova Iorque) que, na sua gestão de acções ao longo da década de 90, enveredou por procedimentos ilegais, acumulando milhões e milhões de dólares. Belfort seria condenado por fraude e lavagem de dinheiro em 1998, tendo cumprido 22 meses de prisão.
O Lobo de Wall Street baseia-se no livro homónimo do próprio Belfort (ed. Presença) e é, de facto, uma história contada na primeira pessoa. Ou melhor: Scorsese dá-nos a ver toda essa desenfreada procura de dinheiro e mais dinheiro através da ânsia de riqueza do seu protagonista, por vezes colocando o próprio DiCaprio como um narrador que, olhando directamente para a câmara, vai dando conta dos prós e contras do seu vício.
E a noção de vício deve ser entendida, não apenas como uma avaliação moral, mas como uma descrição clínica. De facto, Belfort e os seus associados entregam-se a uma vida de permanente consumo tóxico em que o dinheiro é apenas uma variante das muitas drogas (cocaína, morfina, “quaaludes”, Xanax, Ambien, etc.) que determinam os ritmos e comportamentos, os êxtases e as depressões do seu dia a dia.
O filme tem tido um impacto invulgar nos EUA, não apenas com uma boa performance nas bilheteiras, mas sobretudo por causa dos muitos e acesos debates que tem suscitado. Reagindo aos que acusam Scorsese de uma tentativa de “branqueamento” da figura de Belfort, o próprio DiCaprio (que trabalha aqui pela quinta vez sob a direcção do realizador) deu mesmo uma entrevista à revista Variety, sublinhando que nunca foi intenção do filme tentar legitimar os golpes financeiras da Stratton Oakmont ou enaltecer o modo de vida do seu criador.
Ao mesmo tempo, O Lobo de Wall Street tem surgido em destaque nas escolhas das melhores estreias de 2013 de vários críticos americanos, integrando também a lista oficial de “filmes do ano” do American Film Institute, a par, por exemplo, de Gravidade, A Propósito de Llewyn Davis e 12 Anos Escravo.