terça-feira, janeiro 21, 2014

Lars von Trier: a inocência e o pecado

A colagem do rótulo de "chocante" a Lars von Trier passou a funcionar também como uma forma de bloquear a reflexão sobre o seu trabalho: face a Ninfomaníaca - Parte I, uma vez mais, importa tentar contornar o comodismo do lugar-comum — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Janeiro), com o título 'Os novos infortúnios da virtude'.

Desgraçada época esta em que se injecta o povo com os horrores do Big Brother, enquanto a obra de um autor inteligente e adulto como Lars von Trier é tratada automaticamente como bandeira de “escândalo”. Enfim, não sejamos ingénuos e lembremos que o próprio realizador não está isento de responsabilidades no uso de tal rótulo, por vezes com derivações nada felizes – foi o caso das suas palavras, no mínimo irreflectidas, sobre o nazismo, no Festival de Cannes de 2011 (que, aliás, levaram o certame a considerá-lo “persona non grata”).
Acontece que Ninfomaníaca [de que estreia agora a Parte I] surge envolvido num aparato de sugestões “chocantes” que, como é habitual nestas situações, conduzirá o espectador mais crédulo à mais cândida frustração. Não que estejamos perante um filme ligeiro ou pueril. Bem pelo contrário: as experiências amorosas e sexuais de Joe (Charlotte Gainsbourg), tal como ela as conta a Seligman (Stellan Skarsgard), são evocadas como um sonho insensato que, regularmente, se vai transfigurando em perturbante pesadelo. Só que nada disso tem a ver com a noção corrente de que tudo se decide no domínio do “visível”, típica da mais vulgar iconografia televisiva.
Em boa verdade, esta primeira parte (e escusado será dizer que deveremos aguardar a conclusão para entendermos o fôlego do projecto) revela uma filiação clara nas narrativas “confessionais” dos séculos XVIII/XIX, sendo inevitável evocar o sugestivo paralelo do Marquês de Sade e, em particular, de Justine ou os Infortúnios da Virtude. Ninfomaníaca resiste ao moralismo audiovisual do nosso tempo, redescobrindo nos labirintos da palavra o enredo nunca aquietado da inocência e do pecado. Ou ainda: as ambivalências do prazer. Será preciso relembrar que tal exercício só se pratica falando do medo?