sábado, janeiro 25, 2014

América: comédia & tragédia

O cinema de David O. Russell vive, antes do mais, de uma primitiva paixão pelo trabalho dos actores. Golpada Americana aí está, como exuberante confirmação — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Janeiro), com o título 'A América e as suas máscaras'.

Sydney, a personagem de Amy Adams em Golpada Americana, pode simbolizar as singularidades do cinema de David O. Russell (e também o talento da actriz, um dos grandes valores revelados em Hollywood já neste séc. XXI). Primeiro, como companheira de Irving (Christian Bale), inventa a figura de uma “Lady” inglesa para enganar os incautos clientes que recorrem às suas linhas de “crédito”; depois, perante os arroubos amorosos de Richie (Bradley Cooper), agente do FBI, acaba por desmanchar o seu elaborado sotaque, lançando DiMaso num misto de desilusão e revolta...
Há outra maneira de o dizer: as personagens não se definem por uma identidade que, melhor ou pior, tentem preservar através das atribulações da acção; em boa verdade, a sua identidade resulta também das máscaras que, voluntariamente ou não, vão usando ao longo dessa acção.
E não deixa de ser bizarro que, na sua já tradicional frivolidade, os Globos de Ouros de Hollywood tenham distinguido Golpada Americana na categoria de “comédia ou musical”. Não que não haja humor na visão de Russell; além do mais, a música assume um papel invulgarmente orgânico e sensual (veja-se a utilização do tema Jeep’s Blues, de Duke Ellington, na construção da relação entre as personagens de Christian Bale e Jennifer Lawrence). O certo é que todos esses elementos decorrem de uma lógica moral indissociável da premência social da representação: as máscaras não são o contrário da verdade das personagens, antes funcionam como adereços daquilo que são, querem ou imaginam ser.
Vale a pena recordar que, nesta introspecção terna e cruel da América, Russell tem um antepassado de génio em Billy Wilder, autor de clássicos como Crepúsculo dos Deuses (1950) e O Apartamento (1960): aqui, o ponto de fuga da comédia é sempre de natureza trágica.

>>> Jeep's Blues, Duke Ellington no Festival de Newport [apenas som] + trailer de O Apartamento + apresentação da personagem de Amy Adams em Golpada Americana.