quarta-feira, dezembro 11, 2013

Jimmy P. e as atribulações do humano

Jimmy P., Realidade e Sonho propõe uma revisitação insólita, desconcertante e fascinante de um psicanalista e um ex-soldado índio, na ressaca da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Dezembro), com o título 'Uma fábula entre realidade e sonho'.

No passado mês de Maio, quando Jimmy P. (Psycotherapy of a Plains Indian) passou no Festival de Cannes, instalou-se aquele discurso “purificador” que, não poucas vezes, reduz filmes verdadeiramente originais a acontecimentos mais ou menos anódinos. Por um lado, o realizador francês Arnaud Desplechin não podia deixar de ser associado a outro tipo de obras, em especial algumas elaboradas variações sobre a tradição melodramática, incluindo Reis e Rainha (2004) e Um Conto de Natal (2008); por outro lado, para alguns dos menos entusiastas, havia qualquer coisa de “incorrecto” no facto de Desplechin se empenhar em tratar uma história tão americana... Enfim, agora que o filme chegou às salas portuguesas – com o título Jimmy P., Realidade e Sonho – , o menos que se pode dizer é que seria uma pena que tais preconceitos condicionassem a discussão da sua singular proposta histórica e filosófica.
Desplechin recua à década de 1940 para colocar em cena a relação verídica de Georges Devereux e Jimmy Picard: o primeiro, um etnólogo e psicanalista francês (de ascendência judaica e húngara) que se interessou pela herança cultural dos índios americanos; o segundo, um índio que combateu na Segunda Guerra Mundial, tendo regressado com sintomas de um comportamento errático, inicialmente classificado como “esquizofrenia”.
Dizer que Jimmy P., Realidade e Sonho coloca em cena uma experiência emblemática da psicanálise, enquadrada por um peculiar diálogo de culturas, poderá ser uma descrição sugestiva do calor humano que contamina, por vezes de forma misteriosa, as personagens e os objectos. Em todo o caso, importa acrescentar que Desplechin está longe de trabalhar no registo corrente, invariavelmente determinista, da “reconstituição histórica”. Digamos que, em última instância, o seu filme contempla essa dialéctica de realidade e sonho a que alude o título português (retomando o título original do livro que Devereux dedicou ao seu trabalho com Picard: Reality and Dream: Psycotherapy of a Plains Indian).
As notáveis interpretações de Benicio del Toro e Mathieu Amalric, respectivamente como Picard e Devereux, não são estranhas à subtileza dos resultados. De facto, encontramos aqui essa crença muito primitiva que atribui ao actor um lugar central na nossa relação com os acontecimentos que têm lugar num ecrã de cinema (crença obviamente transversal a toda a filmografia de Desplechin). É através das nuances das vozes ou da irredutibilidade dos gestos que compreendemos que a identidade de cada um dos protagonistas tem tanto a ver com o património cultural que transportam como com o processo de contaminação afectiva inerente ao seu diálogo. Talvez que Jimmy P., Realidade e Sonho seja apenas uma fábula sobre o modo como cada ser humano, sendo sempre diferente de outro ser humano, nunca coincide com os desígnios da sua própria história.