segunda-feira, dezembro 02, 2013

Em conversa: Abdellatif Kechiche (1 / 3)

Iniciamos hoje a publicação de uma entrevista com o realizador Abdellatif Kechiche realizada recentemente por ocasião da primeira apresentação entre nós do filme A Vida de Adèle – partes 1 e 2. Esta entrevista serviu de base ao texto 'O amor e a solidão contados no feminino' publicado na edição de 28 de novembro do DN.

Até que ponto o filme nasceu da banda desenhada?
A base do filme está numa ideia que tinha de desenvolver a personagem do meu filme A Esquiva. A personagem do(a) professor(a) de francês... Escrevi um argumento sobre uma mulher que vive das provas e que se comporta sempre segundo o seu dever e que tem de cumprir sempre. Depois não estava muito satisfeito com esse argumento, pelo que o deixei de lado. E quando encontrei aquela banda desenhada, o livro fez-me reviver esta ideia do filme sobre a professora de francês. E inspirei-me na personagem para fazer a personagem de Adèle. Não é por isso a mesma personagem da banda desenhada... Há depois a sua relação com o amor. Ela encontra uma mulher, o que assim juntou algo a esta personagem.

Desenvolveu a sua visão para lá do livro?
Sim., é uma adaptação muito livre da banda desenhada.  

Quando é que sentiu que a banda desenhada já não estava lá...
Ela está lá para a ideia do encontro entre duas mulheres, pelo amor entre duas mulheres. Mas a banda desenhada é uma obra mais militante.  

O filme não?
O filme é um filme sobre o amor. E mesmo se o mostra de uma maneira menos frontal que a banda desenhada.  

Mas explora a questão da homofobia na escola, entre colegas.
Essa cena existia na banda desenhada. Mas não era uma verdadeira homofobia do grupo naquela idade em particular. Ali era mais uma traição da amizade, tenho a impressão. A banda desenhada é toda sobre o processo de aceitação e sobre a dificuldade de viver com isso, a questão identitária. Aqui há mais a relação com o amor, com a vida, com os outros, com a evolução dela mesma como mulher...  

A solidão...
Sim, a solidão, mas também a liberdade.  

A ação passa-se nos anos 90, mas não há marcas evidentes de época. Talvez a ausência dos telemóveis, da redes sociais...
Ao mesmo tempo eu queria que o filme fosse intemporal. E constatei que há muitas professores ainda sem telemóvel... Foi até estranho.  

A presença da escola é importante na definição da personagem de Adèle. Primeiro como aluna, depois como professora... Interessa-o este universo?
Ao fazer A Esquiva abordei este espaço, sem uma razão maior. Mas ao reencontrar professores e profissionais desta área conheci pessoas apaixonantes. Verdadeiros artistas no seu trabalho. Fazem-no com grande consciência, com grande paixão. Vi pessoas que investiram muito para chegar a esta profissão e que acabam não só mal pagos como a viver numa certa obscuridade. E por isso havia esta comparação que queria fazer com o mundo da arte. A cultura, que é um mundo de privilegiados que ganham muito dinheiro... Senti que havia uma opção muito nobre da parte de quem trabalha no ensino. Há mais um investimento num trabalho e menos nas aparências. Mas menos reconhecido.  

Acha que, como os artistas, os professores podem marcar uma pessoa?
De certa maneira. Transmitem uma inspiração, as vezes mais que os próprios ensinamentos. Transmitem inspiração, uma paixão. É uma profissão apaixonante. Mas encarada com ingratidão por muitos. E dou um pouco conta disso no filme. Parece um sub-trabalho para muitos.

São dois filmes de afirmação de uma visão sua da escola e do professor? 
Sim, podemos vê-los assim. Trabalho neste momento numa versão longa do filme e vou desenvolver mais esse lado.

(continua)