quinta-feira, outubro 17, 2013

Uma tragédia australiana (1/2)

David Michôd é um nome a ter em conta: o seu Reino Animal (2011) traz-nos o melhor da actual produção cinematográfica australiana — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Outubro), com o título 'David Michôd filma a tragédia de uma família australiana'.

O cinema da Austrália possui, obviamente, uma história longa que vem desde os pioneiros de finais do séc. XIX. Em todo o caso, pode dizer-se que, para nós, espectadores de um pequeno mercado europeu, a sua percepção continua dominada por alguns modelos consagrados nas décadas de 1970/80. Em primeiro lugar, com os filmes de culto de uma certa “nova vaga” australiana que passou por títulos como Walkabout (1971), de Nicolas Roeg, Piquenique em Hanging Rock (1975), de Peter Weir, ou Calma de Morte (1989), de Philip Noyce; depois, através de sucessos internacionais como Mad Max (1979), de George Miller, ou Crocodilo Dundee (1986), de Peter Faiman.
O lançamento de Reino Animal, de David Michôd, pode ajudar-nos a perceber que qualquer uma dessas perspectivas se tornou insuficiente para dar conta das singularidades da actual produção australiana. A noção de que, em termos cinematográficos, a Austrália não passa de um “entreposto” dos estúdios de Hollywood está longe de fazer justiça à energia dos seus criadores.
Assumindo em Reino Animal a dupla tarefa de argumentista e realizador, Michôd é um cineasta cuja trajectória está enraizada na área documental. E talvez se possa dizer que esta sua estreia na ficção não será estranha a tal experiência, quanto mais não seja porque se trata de evocar a saga verídica da família Pettingill, de Melbourne, cujos membros foram julgados, em finais dos anos 80, por vários crimes, incluindo tráfico de drogas e assaltos à mão armada.
Em qualquer caso, Reino Animal está longe de ser uma memória factual (o apelido da família foi mesmo mudado para Cody). Para Michôd, este universo de perversas cumplicidades familiares surge como uma perturbante parábola sobre o poder do Mal. Mais do que isso: através do predomínio da figura matriarcal da família, Janine Cody (Jacki Weaver), o filme expõe o paradoxo de um colectivo de fortes componentes machistas, mas administrado por uma personagem feminina.
Além de Jacki Weaver (que, entretanto, vimos em Guia para um Final Feliz), Reino Animal constitui também uma montra elucidativa do talento dos actores australianos. Aqui encontramos o jovem James Frecheville que descobrimos em Paixões Proibidas, da francesa Anne Fontaine, a par de Joel Edgerton que passou, por exemplo, por 00:30 A Hora Negra, de Kathryn Bigelow, ou O Grande Gatsby, de Baz Luhrmann. Guy Pearce é também um dos protagonistas, embora, neste caso, com outra dimensão: é de origem inglesa e, há mais de uma década, desde Memento, de Christopher Nolan, ocupa lugar de destaque na produção americana e australiana. Será ele, aliás, uma das vedetas do novo filme de Michôd, o policial The Rover, contracenando com Robert Pattinson.