quinta-feira, outubro 17, 2013

Sollers, entre as mulheres

No incontornável O Segundo Sexo (1949), Simone de Beauvoir escreveu um dos axiomas nucleares de todas as filosofias feministas: "Ninguém nasce mulher: torna-se mulher" (On ne naît pas femme: on le devient.). Digamos que, tal como Beauvoir, Philippe Sollers é um animal com elaborados instintos de marcação de território. Daí que no seu novo livro, Portraits de Femmes, ele comece por propor um genial roubo conceptual: "Ninguém nasce homem, torna-se homem" (On ne naît pas homme, on le devient).
Em boa verdade, tal como em Beauvoir, com a sua recusa de qualquer determinismo biológico, físico ou económico, a citação de Sollers carece de um pouco mais de fôlego. Pelo menos tendo em conta o seguinte: "Ninguém nasce homem, torna-se homem, a maior parte do tempo à sua própria custa. É um longo caminho perigoso que, a maior parte das vezes, não conduz a lado nenhum."
Génio múltiplo de Sollers, fazendo destes retratos de mulheres (obviamente evocando o momento simbólico, ironicamente "escandaloso", de Femmes, publicado há trinta anos) um misto elegante de afirmação de identidade e irrisão de tudo que a palavra não possa recobrir — sem esquecer que recobrir, intensificando o acto de cobrir, envolve os riscos muito humanos da linguagem, quer dizer, do labor paciente e exigente de colocar palavras sobre as coisas.
Tudo isto, enfim, apenas faz sentido, quer dizer, só entra na guerra dos sentidos e da significação pelo lado da mãe, primeira mulher do livro. E da língua mãe. Citação:

>>> O francês tornou-se uma língua morta? Toda a gente diz mais ou menos que sim, o que pode querer dizer que não haveria outra autoridade que não fosse a autoridade muda dos mercados financeiros. Mas não, eu estou vivo e todos estes retratos de mulher respiram.