sábado, outubro 12, 2013

Pensar a história com Hannah Arendt

Barbara Sukowa no papel de Hannah Arendt
O filme Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta, ajuda-nos a reencontrar, não apenas uma brilhante pensadora, mas também o núcleo da história da Europa no séc. XX — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Outubro).

De que falamos quando falamos da Europa? No imaginário televisivo corrente – em que a ”Europa” emerge todos os dias como um misto de utopia e maldição que, no limite, nada significa – quase nunca se fala das especificidades do cinema europeu. Se esse imaginário tivesse alguma consciência da complexidade da história da Europa no séc. XX, um filme como Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta, seria objecto de especial atenção informativa e divulgação pedagógica: está em cena, afinal, a pesada herança do Holocausto. Mas não. Qualquer “blockbuster” americano, dito de efeitos especiais, consegue quase sempre mais espaço noticioso...
Não, não estou a demonizar a produção cinematográfica dos EUA (que, em qualquer caso, globalmente, considero das mais notáveis de todo o planeta cinematográfico). Estou apenas a sublinhar o facto de o filme de Margarethe von Trotta constituir um brilhante exercício de revisitação da personalidade de Hannah Arendt (1906-1975), mais concretamente do ano de 1961, quando ela acompanhou, em Jersusalém, o julgamento do oficial nazi Adolf Eichmann, precisamente um dos mais directos responsáveis pela máquina de morte do Holocausto (através da organização do transporte dos judeus para os campos de concentração). O relativo silêncio em torno do filme é tanto mais triste quanto Margarethe von Trotta enfrenta um interessantíssimo problema de linguagem que, sendo cinematográfico, está longe de ser estranho ao universo televisivo. A saber: como integrar os materiais de arquivo (imagens e sons) que a história nos legou?
Hannah Arendt (1906-1975)
Assim, Margarethe von Trotta não ignora a existência de cerca de duas horas de registos, em video, do julgamento de Eichmann. O filme integra alguns minutos desses registos – em particular quando Eichmann afirma que não passou de um “elo de transmissão” que se limitou a “obedecer a ordens” –, surgindo a personagem de Hannah Arendt (interpretada pela excelente Barbara Sukowa) como alguém que observa Eichmann através das mesmas imagens em que agora nos é apresentado.
O filme dá conta dos artigos que Hannah Arendt escreveu para a revista The New Yorker e, em particular, das muitas polémicas que a sua leitura gerou, nomeadamente no interior da comunidade judaica. Em vez de reduzir Eichmann a uma emanação abstracta do Mal, ela insiste que não é possível compreendê-lo sem ter em conta aquilo que descreveu como “a banalidade do mal”: na sua lógica de burocrata, Eichmann tenta fazer crer que se limitou a respeitar a hierarquia em que estava inserido, como se fosse indiferente o seu papel na chacina de seis milhões de seres humanos.
Em resumo: Hannah Arendt é um filme precioso, capaz de mostrar como a percepção da história envolve sempre um jogo dialéctico entre passado e presente, ideias herdadas e ideias contemporâneas. Vê-lo e discuti-lo deveria ser uma prioridade democrática.