domingo, outubro 13, 2013

Miley Cyrus contra Madonna

Será que podemos reduzir a música de Miley Cyrus às suas atribulações iconográficas? Claro que não. Muito provavelmente, as suas canções merecem mais atenção (e, sobretudo, outro tipo de atenção) do que aquela que a sua grosseira gestão de imagem tem suscitado. Nas páginas da Rolling Stone, Jon Dolan resume tal conjuntura de forma sugestiva, considerando que o seu quarto álbum de estúdio, Bangerz, pode ser visto/ouvido como "o som de Hannah Montana a virar para Miami Vice".
Apesar disso (ou precisamente por causa disso), importa perguntar o que a máquina promocional de Miley Cyrus está a fazer de todo um complexo sistema de imagens & linguagens que, ao longo das últimas três décadas, tendo em Madonna uma referência charneira, soube desmontar as convenções associadas à representação do feminino — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Setembro), com o título 'Madonna não tem culpa'.

* * * * *

Vivemos um tempo pueril em que basta Miley Cyrus fazer um teledisco (Wrecking Ball) a lamber repetidas vezes um microfone (sic) para haver uma multidão a elogiar a sua “sensualidade”, outra a berrar contra o “escândalo”... É certo que um simples olhar de Greta Garbo pode envolver uma intensidade erótica capaz de anular toda a iconografia de Cyrus, mas a menina de 20 anos não tem culpa da ignorância cinéfila em que nos mergulharam.
Em defesa de Cyrus, há que reconhecer que ela é um peão de um sistema de marketing obviamente empenhado em superar a sua imagem infantil ligada à personagem de Hannah Montana. Mas o reconhecimento dessa dependência pode arrastar um moralismo que gostaria de não favorecer: o de exaltar a verdade “artística” contra a “perversão” do mercado. Bem pelo contrário, nada da cultura pop (a começar pela música) é estranho à dinâmica e, importa também dizê-lo, à criatividade do mercado.
Acontece que, no plano formal, Cyrus é um resto patético de todo um processo de reconversão simbólica do factor feminino iniciado, dez anos antes de ela ter nascido, por uma senhora chamada Madonna que não pode ser responsabilizada pelos disparates em que as suas discípulas se envolvem. Como Camille Paglia já explicou num artigo na Time (27 Agosto), cruelmente intitulado “Miley, volta para a escola”, Madonna trabalhava a partir de uma noção de transgressão que era (e é) indissociável da sua formação religiosa e do seu universo estético. Cyrus limita-se a funcionar como signo impessoal de uma lógica de “provocação” que nem sequer sustenta o confronto com a elegância formal de um qualquer anúncio de marcas como a Chanel ou Calvin Klein. Em última instância, os criativos (?) ao serviço de Cyrus apenas vêem nela as potencialidades daquilo a que chamam um “produto”.