domingo, outubro 06, 2013

Bertolucci depois da revolução (1/2)

FOTO: Brigitte Lacombe
Com o belíssimo Eu e Tu, Bernardo Bertolucci reencontra e reavalia o tema obsessivo da juventude — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Outubro), com o título 'Os jovens "marginais" de Bernardo Bertolucci'.

Quando Bernardo Bertolucci surgiu no Festival de Cannes de 2012, apresentando extra-competição o filme Eu e Tu, a comunidade internacional do cinema celebrou o reencontro com uma das personalidades marcantes na história dos filmes do último meio século. Devido a problemas de saúde, Bertolucci não filmava há quase uma década, tendo mesmo chegado a admitir que, para ele, o labor cinematográfico teria acabado. O certo é que Eu e Tu ficou como um dos acontecimentos centrais dessa edição do maior festival de cinema do mundo, afinal incitando-nos a rever e reavaliar os temas mais íntimos do cineasta.
Em muitos aspectos, Bertolucci parece ser um daqueles artistas raras vezes reconhecido pela diversidade da sua obra, sendo quase sempre reduzido a uma ou duas “imagens de marca”. A primeira provém, como é óbvio, do impacto mais ou menos escandaloso de um título como O Último Tango em Paris (1972), hoje em dia genericamente reconhecido como um testemunho exemplar de uma época de profundas e dramáticas interrogações existenciais; a segunda está ligada ao grande espectáculo e decorre do sucesso internacional de O Último Imperador, superprodução histórica vencedora dos Oscars referentes ao ano de 1987.
Por isso mesmo, mais do que nunca, importa lembrar que Bertolucci tem sido também (talvez mesmo sobretudo) um retratista obsessivo da juventude. E nas mais diversas conjunturas históricas e criativas, desde os agitados anos 60, em Antes da Revolução (1964), até à evocação poética de Maio 68, em Os Sonhadores (2003), precisamente o título anterior a Eu e Tu.
O que distingue Eu e Tu é a sua singeleza. O título refere-se a Lorenzo (Jacopo Olmi Antinori), de 14 anos, e a sua meia irmã Olivia (Tea Falco), cerca de dez anos mais velha. Lorenzo despede-se dos pais, partindo para uma excursão escolar a uma estância de esqui; de facto, está a mentir porque o seu plano, cuidadosamente planificado, consiste em esconder-se na cave do próprio prédio onde vive a família... Aí se instala como uma tribo de uma só pessoa, até que Olivia o descobre – do seu insólito encontro vai nascer um processo de mútua revelação ou, pelo menos, novas vias para cada um deles lidar com a angústia que o atormenta.
Em Os Sonhadores, Bertolucci encenara as suas personagens como um produto ambíguo das convulsões de Maio 68: afinal de contas, bem ou mal, com alegria ou desencanto, eles não podiam deixar de participar nas transformações que se exprimiam nas ruas. Agora, em Eu e Tu, dir-se-ia que o mundo todo se enquistou naquela cave em que Lorenzo e Olivia partilham a sua condição de “marginais” do mundo dos adultos, ao mesmo tempo que enfrentam o incómodo do seu mútuo desconhecimento.