quinta-feira, outubro 24, 2013

A memória segundo Claude Lanzmann (3/3)

Ao longo de várias décadas, o francês Claude Lanzmann tem desenvolvido um trabalho exemplar e obsessivo sobre as memórias do Holocausto. Com a edição em DVD do seu filme monumental Shoah, podemos descobrir ou redescobrir uma obra fundamental do cinema do séc. XX — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (12 Outubro), com o título 'O Holocausto através das palavras do cinema'.

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Ao longo das suas quase dez horas de duração, Shoah (palavra hebraica que envolve as noções de catástrofe e destruição) integra diversas entrevistas, nomeadamente com sobreviventes de Treblinka e Auschwitz, um guarda de Chelmno e um funcionário da máquina burocrática do governo nazi. O dispositivo mantém-se: as memórias não são figuradas através de “provas” fotográficas ou cinematográficas, já que tudo passa pelo fluxo da fala e pelo labor de identificação que as palavras necessariamente envolvem.
Há uma excepção que vale a pena referir. Surge na abertura de Sobibor, 14 Outubro 1943, 16 Horas (2001), filme que completa esta edição em DVD e que Lanzmann realizou a partir de uma outra entrevista não utilizada na montagem final de Shoah, neste caso com Yehuda Lerner, sobrevivente da única revolta bem sucedida num campo de extermínio (referindo-se o título a esse campo e à data precisa da eclosão da revolta). Sobibor... inicia-se, de facto, com uma fotografia de arquivo, de oficiais das SS a fazerem a saudação nazi diante dos caixões dos seus camaradas mortos durante os confrontos daquela revolta – 20 segundos depois, o rosto de Lerner enche o ecrã, aguardando a primeira pergunta de Lanzmann. Dir-se-ia que o documento fotográfico desempenha, não a função tradicional de testemunho, surgindo antes como uma “imagem-ecrã” a que importa contrapor o fluxo das palavras.
Podemos, sem dúvida, situar a obra cinematográfica de Lanzmann a partir da sua experiência durante a Segunda Guerra Mundial. Nascido em Paris, a 27 de Novembro de 1925, numa família de imigrantes judeus do leste da Europa, aos 18 anos já estava envolvido na Resistência. Além do mais, no plano intelectual, ele é um herdeiro do pensamento de Jean-Paul Sartre, não só porque foi um “compagnon de route” do autor de O Existencialismo é um Humanismo, mas também porque, enquanto director da revista Les Temps Modernes, Lanzmann assume uma parte do seu legado intelectual: a revista foi criada em 1945, por Sartre e Simone de Beauvoir; Beauvoir assumiu a direcção em 1980, depois da morte de Sartre; Lanzmann sucedeu a Beauvoir, falecida em 1986.
Os trabalhos de rodagem e montagem de Shoah decorreram ao longo de quase doze anos, período em que, para além das investigações históricas, se assiste também à dissipação do “filme de guerra” (entenda-se: o filme sobre a Segunda Guerra Mundial) como modelo regular de produção, nomeadamente nos países europeus que mais o exploraram (França, Itália, Reino Unido) e no contexto de Hollywood.
Dois títulos podem ajudar a definir essa dinâmica através da qual o “filme de guerra” colide com as fronteiras do seu próprio classicismo, de algum modo desenhando um mapa de hipóteses a que, directa ou indirectamente, o trabalho de Lanzmann não é alheio. O primeiro, Tristeza e Compaixão (1969), de Marcel Ophüls (2), refaz a história da França ocupada pelo exército nazi e do regime de Vichy através de uma matriz documental que, embora não excluindo a integração de documentos visuais (fotografia e filme), se organiza a partir de entrevistas realizadas no seu próprio presente (recorde-se que Ophüls veio a exprimir publicamente a sua admiração por Shoah, considerando-o “o maior documentário feito sobre o Holocausto”). O segundo filme corresponde a uma espécie de balanço, pessoal e autobiográfico, da experiência de guerra do próprio autor, Samuel Fuller (3): chama-se The Big Red One/O Sargento da Força Um (1980) e evoca várias frentes dos combates finais na Europa, incluindo a libertação do campo de Falkenau, na então Checoslováquia (actual República Checa).
Hoje em dia, a contextualização de todos os filmes que, directa ou indirectamente, trabalham sobre as memórias do Holocausto não poderá ser separada de uma profunda alteração estrutural, tecnológica e simbólica, posterior aos anos dourados do “filme de guerra”, quando o cinema ainda era o centro da experiência audiovisual dos espectadores. Aliás, talvez se possa considerar que, mal ou bem (mal, segundo Lanzmann), essa alteração tem um momento emblemático de clivagem na difusão da série Holocausto (1978), com Meryl Streep, James Woods e Michael Moriarty.
Vivemos, assim, numa paisagem global em que o dispositivo televisivo – disseminado por uma impressionante proliferação de ecrãs – se tornou o poder dominante de narrativa e difusão. De uma maneira ou de outra, cada cineasta não pode deixar de se confrontar com esse assombramento das imagens do passado que leva Lanzmann a optar pela inscrição do presente. Outro exemplo, também revelado este ano em Cannes, será L’Image Manquante/The Missing Picture, do cambodjano Rithy Panh (4), sobre as atrocidades do regime dos Khmers Vermelhos: neste caso, perante a escassez de documentos (o título refere-se, literalmente, a uma “imagem em falta”), Panh opta por uma representação com figurinhas de barro, de algum modo intensificando a perturbação inerente às memórias dos sobreviventes.
Daí também a crescente importância prática e simbólica, numa palavra, política de todas as formas de preservação, arquivo e sistematização das memórias audiovisuais. Ligado ao Museu do Holocausto, em Washington, o Arquivo de Filme e Vídeo de Steven Spielberg, criado pelo cineasta na sequência de A Lista de Schindler, constitui, nesse aspecto, um empreendimento modelar. Se consultarmos o respectivo site, lá encontramos cerca de seis dezenas de entradas referentes ao trabalho de Claude Lanzmann, incluindo muitas das entrevistas que figuram em Shoah.
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(2) MARCEL OPHÜLS (n. 1927) – Nascido na Alemanha, filho do cineasta Max Ophüls (1902-1957), é autor de uma vasta obra documental, realizada sobretudo em França, marcada pelos temas da Segunda Guerra Mundial. Hotel Terminus (1988), sobre Klaus Barbie, chefe da Gestapo em Lyon, valeu-lhe um Oscar. Un Voyageur, uma memória pessoal, foi apresentado este ano em Cannes.

(3) SAMUEL FULLER (1912-1997) – Combinando o espírito da “série B” com um primitivo espírito de revolta, é um dos grandes individualistas do cinema americano. Do western (A Flecha Sagrada, 1957) à parábola política (O Cão Branco, 1982), deixou uma obra profundamente influente, em particular junto dos autores da Nova Vaga francesa.

(4) RITHY PANH (n. 1964) – Sobrevivente dos campos de “reabilitação” dos Khmers Vermelhos, tem realizado, a partir de França, vários documentários sobre o seu regime ditatorial, incluindo La Terre des Âmes Errantes (2000) e S-21, La Machine de Mort Khmère Rouge (2003).