terça-feira, outubro 22, 2013

A memória segundo Claude Lanzmann (2/3)

Ao longo de várias décadas, o francês Claude Lanzmann tem desenvolvido um trabalho exemplar e obsessivo sobre as memórias do Holocausto. Com a edição em DVD do seu filme monumental Shoah, podemos descobrir ou redescobrir uma obra fundamental do cinema do séc. XX — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (12 Outubro), com o título 'O Holocausto através das palavras do cinema'.

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O DVD de Shoah surge numa conjuntura intelectual tanto mais interessante quanto 2013 tem sido um ano especialmente rico na diversificação da oferta do mercado e, em particular, na apresentação plural de vias de reflexão sobre o Holocausto (se tudo isso é, ou não, sustentado por estratégias eficazes de comunicação e promoção, será uma dúvida que importa formular, mas que não cabe no âmbito deste texto).
Dois filmes podem balizar tal conjuntura. O primeiro, Lore, dirigido pela australiana Cate Shortland, regressa ao ano de 1945, na Alemanha, para nos confrontar com uma perspectiva tanto mais inesperada sobre o final da guerra quanto emana, não do espaço dos vencedores (as tropas aliadas), mas de uma família alemã (cujo pai é um oficial nazi); mais do que isso: Lore constrói a sua narrativa a partir dos filhos em fuga. O segundo filme, Hannah Arendt, da alemã Margarethe von Trotta, recorda a personalidade e o pensamento da filósofa alemã (que, em todo o caso, rejeitava ser identificada como “filósofa”) num momento histórico muito preciso: o julgamento de Adolf Eichmann, em 1961, como um dos principais responsáveis pela logística da Solução Final que se saldou pelo extermínio de seis milhões de judeus.
O filme de Margarethe von Trotta, justamente, aplica um dispositivo que, por princípio, o método de Lanzmann rejeita. Assim, existindo um registo de imagens de vídeo do julgamento de Eichmann, a personagem de Arendt (interpretada por Barbara Sukowa) acompanha o julgamento através dessas imagens, por assim dizer aproximando-a simbolicamente de cada um de nós: ela faz parte da comunidade dos espectadores, excepcionalmente “dentro” do próprio filme.
Shoah abre com a evocação do começo do extermínio dos judeus, em Chelmno, na Polónia. Como recorda um texto que passa no ecrã, de baixo para cima, sem qualquer som ou comentário musical: “Chelmno foi o primeiro lugar de extermínio de judeus com gás, na Polónia. Esse extermínio começou a 7 de Dezembro de 1941. Em Chelmno, foram assassinados 400 mil judeus em dois períodos distintos: de Dezembro de 1941 à Primavera de 1943, e de Junho de 1944 a Janeiro de 1945. O modo de extermínio foi sempre o mesmo: os camiões de gás.”
Não se julgue, porém, que esta introdução coloca a narrativa de Lanzmann num tempo passado: “Aconteceu...” Nada disso: o filme remete-nos para o seu próprio presente (e, implicitamente, para o momento em que o vemos). As palavras, em vez das imagens – literalmente: antes das imagens –, revelam-se essenciais nesse dispositivo. O tempo em que somos situados é: “Está a acontecer...” De tal modo que o referido texto abre assim: “A acção começa no presente, em Chelmno, no rio Narew, na Polónia.”
Que acontece, então, nesse presente em que o filme se coloca, e para o qual nos convoca? Como é dito também no texto, Lanzmann convenceu um dos poucos sobreviventes, Simon Srebnik, a voltar a Chelmno. Está agora com 47 anos e vive em Israel. Na condição de prisioneiro, tinha 13 anos, viu reconhecidas as suas qualidades de cantor, sendo obrigado a entoar temas militares para os nazis. A cena começa com ele a chegar, de barco, à zona do campo, cantarolando: “Uma casinha branca / Subsiste na minha memória...” A câmara acompanha Srebnik por um caminho campestre, até que ele pára, abana a cabeça em tom afirmativo e diz: “Custa a reconhecer, mas foi aqui. Sim, eles queimaram aqui gente. Muitas pessoas foram aqui queimadas. Sim, foi aqui, neste sítio.”
Num certo sentido, a imagem seguinte não pode deixar de ser recebida como um plano subjectivo daquilo que Srebnik está a descrever: numa panorâmica da direita para a esquerda, deparamos com um campo verde, sereno e acolhedor, em que as únicas marcas de intervenção humana são uma espécie de esquadrias rectangulares de pedra escura, por certo delimitando os pavilhões que ali existiram. A certa altura, ainda sobre essa panorâmica, a voz volta a ouvir-se: “Quem para aqui veio, já daqui não voltou a sair.” A panorâmica termina, regressamos à imagem de Srebnik e ele continua a sua evocação: “As carrinhas do gás entravam aqui... Havia dois fornos enormes, depois os corpos eram atirados para esses fornos e as chamas chegavam ao céu.” Um pouco mais à frente, Srebnik caminha ao lado de Lanzmann e remata: “Ninguém pode descrevê-lo. Ninguém pode recriar o que aconteceu aqui. É impossível! E ninguém consegue compreender. Mesmo eu, aqui, agora.” Plano seguinte: Srebnik caminha sobre a esquadria de pedra, numa imagem de impressionante pureza geométrica que, em boa verdade, não procura nenhuma mais-valia simbólica. Como se ele dissesse apenas: “Estou aqui, outra vez, neste mesmo sítio.”
Dois princípios vitais de mise en scène estão aqui em jogo. O primeiro decorre do facto de o motor da acção – porque de acção se trata, cruzando reconhecimento e memória – não ser a evidência do visível (até porque muitos dos elementos evocados já lá não estão), mas o poder material da palavra: através da fala, os que prestam o seu testemunho conferem à história uma espessura eminentemente corporal, já que o regresso do seu corpo “ao mesmo sítio” desencandeia um perturbante efeito de verdade. O segundo princípio decorre do primeiro e envolve o pensamento interior do próprio cinema: não se trata de “apresentar” os elementos que fazem a história, individual ou colectiva, mas sim de os inscrever como um presente inelutável e obsessivo – como se o acto de filmar fosse, não uma “exposição” mas sim, se é que podemos inventar um neologismo, uma “presentificação”. Tudo é presente – eis a intransigência ética do cinema de Lanzmann.
[continua]