terça-feira, setembro 03, 2013

Uma família israelita

Uma bela revelação vinda do cinema de Israel: história de um noivado no seio de uma família ortodoxa, Noiva Prometida organiza-se como uma subtil e delicada viagem pelos circuitos do desejo e os princípios da lei — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Agosto), com o título 'Os caminhos ínvios do melodrama'.

Há toda uma geração de espectadores jovens que foram educados, aliás, deseducados para encarar o cinema como uma acumulação ruidosa de “efeitos especiais”. Reconhecê-lo não implica nenhuma negação da excelência de muito cinema americano contemporâneo (por vezes, é um facto, envolvendo extraordinárias proezas técnicas). Acontece que, pelo caminho, para esses espectadores, se perdeu o gosto pelo mais primitivo princípio criativo do cinema. A saber: o poder de nos mostrar o que nunca vimos.
Noiva Prometida, de Rama Burshtein, cumpre esse princípio de modo delicado e contundente. Penetramos nos espaços de uma família ortodoxa israelita, deparando com um universo que, pelas suas componentes religiosas e rituais quotidianos, está necessariamente distante dos hábitos e valores da nossa condição de europeus ocidentais. Não que prevaleça aqui a ideologia televisiva que transforma qualquer “estrangeiro” em coisa pitoresca, mais ou menos marcada pela “ironia” dos usos e costumes. Como é óbvio, Burshtein é uma mulher que pertence ao universo que retrata e, desde a verdade dos rostos até à densidade dos gestos, conhece exactamente aquilo que filma e sabe como o deve filmar.
Daí que a odisseia da escolha de um noivo para a jovem Shira (Hadas Yaron, espantosa actriz) não se esgote numa típica convulsão melodramática. Melodrama existe, sem dúvida, se considerarmos que o género nasce das tensões entre os desejos individuais e os desígnios familiares ou sociais. Mas o seu desenvolvimento possui, aqui, tanto de enigmático como de comovente. No final, sentimos que participamos de todas as emoções de Shira, mesmo quando as suas motivações nos escapam: Noiva Prometida é um filme cuja estranheza lhe confere, em última instância, uma intensa universalidade.