domingo, agosto 04, 2013

A América de Aaron Sorkin (1/3)

27 Fevereiro 2011: Aaron Sorkin recebe o Oscar
de melhor argumento adaptado, por A Rede Social
Newsroom é um dos acontecimentos maiores dos últimos anos da televisão americana. Aaron Sorkin, o seu criador, inventou um canal televisivo que espelha, não apenas o mundo da informação “instantânea”, mas também as contradições simbólicas da América dos nossos dias — este texto foi publicado no suplemento "QI", do Diário de Notícias (20 Julho), com o título 'A nostalgia utópica da América'.

A 27 de Fevereiro de 2011, Aaron Sorkin (1) subiu ao palco do Kodak Theater, em Los Angeles, para receber o Oscar de melhor argumento adaptado, por A Rede Social/The Social Network (realizado por David Fincher). O seu discurso de agradecimento começou com estas palavras: “É impossível descrever o sentimento de receber o mesmo prémio que, há 35 anos, foi dado a Paddy Chayefsky (2) por outro filme com a palavra ‘network’ no título.”
Referia-se ele ao Oscar de melhor argumento original ganho por Chayefsky com o filme Network (1976), de Sidney Lumet (em boa verdade, cometendo um pequeno erro de cálculo, já que a cerimónia referente aos Oscars de 1976 teve lugar no dia 28 de Março de 1977, portanto, não 35, mas 34 anos antes). Para Sorkin, era importante estabelecer uma ponte profissional e simbólica, não apenas com um dos símbolos maiores das transformações estruturais do audiovisual nas décadas de 50/60, mas também com um narrador que soube olhar para o universo televisivo muito para além do pitoresco anedótico de muitos clichés: colocando em cena um canal de televisão vendido à ditadura das audiências, Network é mesmo um filme com um admirável sentido premonitório dos horrores muito contemporâneos do populismo da “reality TV” e seus derivados.
Colocando em cena o dia a dia de uma estação fictícia de televisão – ACN (Atlantic Cable News) –, a série Newsroom, criada por Sorkin para a HBO (com o primeiro episódio a ser difundido a 24 de Junho de 2012) assume-se como um claro descendente dessa árvore genealógica. A herança de Chayefsky reflecte-se numa aproximação realista de situações em que a palavra nunca é meramente instrumental: dir-se-ia que cada personagem vive os seus dramas como uma questão interna aos próprios diálogos, funcionando as palavras não como uma derivação “descritiva” da acção, antes como elementos fulcrais dessa mesma acção. Ao mesmo tempo, as tensões internas da ACN, cruzando à boa maneira clássica as questões deontológicas com as histórias individuais, remetem para uma interrogação vital na história da televisão: como se comunica com o espectador? Ou ainda: quando se faz televisão e, em particular, quando se faz jornalismo televisivo, que visão do mundo se transmite ao espectador?
[continua]

(1) AARON SORKIN (n. 1961) – Dois momentos são decisivos na afirmação de Sorkin: o argumento do filme Uma Questão de Honra (Rob Reiner, 1992), inspirado numa peça de sua autoria, e a criação da série Os Homens do Presidente (1999-2006). Depois de A Rede Social (2010), escreveu, com Steve Zaillian, Moneyball-Jogada de Risco (Bennett Miller, 2011). A segunda temporada de Newsroom começou a ser emitida nos EUA a 14 de Julho.

(2) PADDY CHAYEFSKY (1923-1981) – Argumentista e produtor, tem o seu nome ligado a um título nuclear na história das contaminações narrativas cinema/televisão: Marty (Delbert Mann, 1955). Assinou, entre outros, os scripts de Herói Precisa-se (Arthur Hiller, 1964) e Os Maridos de Elizabeth (Joshua Logan, 1969).