terça-feira, julho 16, 2013

"Paixão" / De Palma (2/2)

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Um americano em Berlim — eis a base de produção do mais recente filme de Brian De Palma. Chama-se Paixão e confirma a sua invulgar capacidade para trabalhar as sedutoras ambiguidades da imagem cinematográfica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Julho), com o título 'O cinema, o real e o surreal'.

É conhecida a relutância de Brian De Palma em explicitar ou reconhecer os nomes dos cineastas, e respectivos filmes, citados ao longo da sua obra. Em boa verdade, ele não nega tais referências; aliás, quem assinou Obsessão (1976), Vestida para Matar (1980) ou Mulher Fatal (2002), como poderia desmentir a sua dívida simbólica em relação ao mestre Alfred Hitchcock? O problema está algures.
De facto, nos tempos de crise da cinefilia clássica que estamos a atravessar, entende-se muitas vezes a citação como um mero labor copista, reduzindo-se a homenagem dos discípulos a banais esforços de imitação. Ora, De Palma nunca foi um mero imitador e o sofisticado exercício de mise en scène que é Paixão aí está para o demonstrar. É verdade que a sombra tutelar de Hitchcock continua a estar bem presente; e não será abusivo considerar que a relação entre as duas mulheres interpretadas por Rachel McAdams e Noomi Rapace integra alguns ecos irónicos do Persona (1966), de Ingmar Bergman. Acontece que o essencial decorre de uma crença profunda no cinema, não como arte de decifração do real, mas como máquina de ilustração da impossibilidade de o decifrar.
Para o cineasta, as histórias poderão ser vividas para libertar as personagens de tudo aquilo que as assombra mas, em última instância, há sempre uma réstea de assombramento que baralha a suposta transparência desse mesmo real. Nesta perspectiva, não tenho a certeza se poderemos considerar De Palma um herdeiro directo dos surrealistas, mas creio que faz sentido afirmar que, nos seus filmes, real e surreal são apenas duas máscaras intermutáveis. Como as duas mulheres de Paixão, tão diferentes na sua pose, tão iguais na sua convivência com a convicção do Bem e a sedução do Mal.