quarta-feira, abril 24, 2013

O prof. Lazhar, as crianças e o cinema

Para além do simplismo paternalista de Morangos com Açúcar, há outras maneiras de lidar com as personagens mais jovens: o filme canadiano Professor Lazhar é um bom exemplo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Abril), com o título 'As crianças também são personagens'.

Numa sociedade em que um produto como Morangos com Açúcar tem tanto poder promocional e mediático (numa palavra, normativo), não é possível que a infância ou a juventude sejam, na área da ficção, valores verdadeiramente respeitados. Porquê? Porque a grosseira simplificação das vivências das personagens mais jovens, reforçada por um sistema narrativo estereotipado e moralista (dependente das leis do imaginário “telenovelesco”), só pode produzir um efeito: aquele é um universo de gente caricata que, na melhor das hipóteses, apenas pode suscitar um paternalismo hipócrita.
Que quase ninguém queira discutir tudo isso (a começar por quem tem responsabilidades políticas e educacionais), eis o que é bem revelador do estado de moribunda indiferença em a sociedade portuguesa vive face aos modelos dominantes de ficção audiovisual. Ainda assim, vale a pena sublinhar que, apesar de tudo, um olhar disponível pode encontrar alternativas. Desta vez, no circuito cinematográfico, através de um muito sério, e muito digno, filme de origem canadiana: Professor Lazhar, escrito e realizado por Philippe Falardeau.
Na altura em que está na moda demonizar Hollywood (em boa verdade, nunca deixou de estar...), vale a pena lembrar que a visibilidade internacional deste título resulta, em parte, das estruturas do cinema americano: Professor Lazhar foi um dos nomeados para o Oscar de melhor filme estrangeiro referente a 2011 (ganho por Uma Separação, do iraniano Asghar Farhadi).
Há, de facto, uma dimensão universal em Professor Lazhar, envolvendo a necessidade (educacional, afectiva e simbólica) de lidar com cada criança como um ser singular, impossível de reduzir a qualquer padrão abstracto de “infância”. Aliás, a perturbação desencadeada pelo filme de Falardeau é tanto maior quanto a história que nele se narra está marcada por elementos muitíssimo particulares: Lazhar (Mohamed Fellag) é um cidadão argelino que tenta ser legalmente reconhecido, no Canadá, como refugiado político; enquanto espera, dá aulas a uma turma cuja professora se suicidou recentemente, tendo escolhido a própria sala de aula para consumar o seu gesto trágico...
Escusado será dizer que esta peculiar conjugação de elementos empresta a Professor Lazhar uma carga emocional que, de uma maneira ou de outra, vai compelir cada personagem a enfrentar alguma verdade mais ou menos recalcada. Mesmo se algumas dessas personagens nos podem surgir a partir de estereótipos bem conhecidos, o filme desenvolve-se como um delicado processo de revelação das diferenças individuais. E se outras razões não houvesse para descobrir o trabalho de Falardeau, a sua notável capacidade para dirigir crianças seria mais que suficiente. Não é todos os dias que vemos seres tão jovens ganharem, no ecrã, uma tão comovente energia humana e também uma tão especial pertinência dramática.