domingo, abril 28, 2013

Memórias do "Não" chileno (1/2)

Pablo Larraín
Com o filme Não, o chileno Pablo Larraín conclui uma magnífica trilogia sobre os tempos e as personagens da ditadura de Augusto Pinochet — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 Abril), com o título 'Pablo Larraín reencena o fim de Pinochet'.

Raras vezes um filme terá tido um título tão simples e tão eloquente: Não, de Pablo Larraín, revisita a sociedade chilena nos tempos atribulados em que a ditadura militar de Augusto Pinochet tentava um último golpe para encontrar algum tipo de legitimação.
Estava-se em 1988 e o regime saído do golpe que derrubara o governo de Salvador Allende, em 1973, confrontava-se com crescentes pressões, internas e externas, para pôr a funcionar as instituições democráticas. As perseguições políticas, o regime de censura, os milhares de opositores “internados” e torturados definiam um sistema de governação que, agora, tentava perdurar através de uma consulta popular. Daí a marcação de um plebiscito em que se pedia aos cidadão chilenos que escolhessem uma de duas opções em torno de um candidato único: “sim” e Pinochet seria empossado para um mandato de mais oito anos, com eleições parlamentares a realizar nove meses mais tarde; “não” e o candidato permaneceria no poder por mais um ano, de modo a realizarem-se eleições (para a presidência e o parlamento) três meses antes do final desse período. Os chilenos votaram a 5 de Outubro de 1988 e o “não” venceu (com 55,98 por cento). Na prática, Pinochet terminou as suas funções a 11 de Março de 1990, sucedendo-lhe na presidência o democrata-cristão Patricio Aylwin.
Para Larraín, a evocação desta conjuntura tão particular e tão decisiva para os destinos do seu país não pode ser dissociada de um trabalho que tem tanto de histórico como de simbólico: o filme Não encerra uma trilogia cinematográfica centrada nas memórias da ditadura de Pinochet, revisitada não exactamente através da sua política, antes fazendo o retrato de algumas singularíssimas personagens. Assim, Tony Manero (2008) colocava em cena um homem que, numa sociedade cada vez mais asfixiada, tentava manter o seu culto da personagem de John Travolta (“Tony Manero”) no filme Febre de Sábado à Noite (1977); por sua vez, Post Mortem (2010) centrava-se num funcionário da morgue de Santiago do Chile que ia compreendendo a amplitude do extermínio levado a cabo pela junta militar. Em ambos os casos, o protagonista era Alfredo Castro, figura lendária do moderno teatro chileno.
O caso de Não é tanto mais surpreendente quanto Larraín centra a sua história numa personagem directamente afectada pelo processo de preparação do plebiscito de 1988: René Saavedra, interpretado pelo mexicano Gael García Bernal, é um criativo de uma agência publicitária cujo director (de novo Alfredo Castro) trabalha para o “sim”; ao ser solicitado para colaborar com as forças do “não”, Saavedra vai protagonizar uma odisseia em que a vulnerabilidade da sua situação profissional é apenas um sintoma da encruzilhada vivida por todo um país.
Estamos, portanto, muito longe de uma mera “reconstituição” histórica. No limite, Larraín questiona as alianças entre os valores políticos e os discursos publicitários, recusando reduzir a história colectiva a um mero confronto de “bons” e “maus”. Por isso mesmo, este tem sido um objecto capaz de gerar apaixonadas discussões, desde logo na própria sociedade chilena. Para a história, fica ainda uma proeza: Não foi a primeira produção do Chile a obter uma nomeação para o Óscar de melhor filme estrangeiro.