domingo, abril 07, 2013

José Sócrates e as narrativas

PIERRE BONNARD
Flores e livros
1912
Antes mesmo de José Sócrates iniciar as suas intervenções regulares na RTP, muitos sectores do país mediático revoltaram-se contra as suas "narrativas". Afinal de contas, de que falamos quando falamos de narrativas? — esta crónica de televisão foi publicada no Diário de Notícias (5 Abril).

Podemos, evidentemente, acomodar-nos no regaço social da estupidez e considerar que José Sócrates na RTP1, a fazer comentário político, não passa de uma encarnação satânica. Podemos até fingir a mais cega candura, acreditando que todos, mas mesmo todos, os comentadores políticos que enxameiam o espaço televisivo, além de deixarem nas salas de caracterização as heranças do seu passado político e os sintomas (benignos, por certo) das suas filiações partidárias, não passam de crianças incrédulas empenhadas em conduzir-nos, pé ante pé, ao paraíso da virgindade ideológica.
Ainda assim, a última semana foi desconcertante: afinal, porque é que muitos pensadores do nosso mundo pouco pensante se sentiram tão abalados com o uso da palavra “narrativa” por José Sócrates? A pergunta pode ser formulada de modo mais pedagógico: porque é que, quando alguém diz alguma coisa consistente e inteligente, a arte menor da chacota se manifesta com tão acomodada exuberância?
Falo por mim. Ao colocar as narrativas no coração do espaço televisivo, José Sócrates fez mais pela crítica de televisão do que eu, em muitas décadas de prosa, poderia ambicionar. Entenda-se: reconhecer a existência de narrativas (políticas, jornalísticas, etc.) não é o mesmo que chamar “mentiroso” seja a quem for; é antes lembrar que a aproximação da verdade envolve um labirinto de olhares, visões e linguagens em que cada um afirma, mesmo quando o nega, o relativismo do seu posicionamento no mundo. É triste, mas é assim: as lições de Saussure, Freud ou Barthes, ao longo do século XX, não bastaram; precisamos de José Sócrates para nos lembrar que a nossa dimensão humana só o é porque se enraíza na transfiguração do mundo em narrativa(s).
Por uma vez, em televisão, assistimos assim ao consumar de um gesto genuinamente político: alguém que vem dizer que a política não se faz de inquestionáveis transparências, proclamando, tão só: “Eu vejo o mundo assim”. No limite, defendendo o seu direito de expressão, José Sócrates estava também a defender o direito dos outros à elaboração das suas narrativas.