quarta-feira, março 20, 2013

Marion Cotillard: a arte do corpo

Reconhecimento banal: representar é uma arte específica dos corpos. E, no entanto, a sua especificidade raras vezes adquire a intensidade com que Marion Cotillard interpreta a sua personagem em Ferrugem e Osso, de Jacques Audiard — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Março), com o título 'Corpo, drama e melodrama'.

O realismo das imagens é uma fulcral questão simbólica do nosso tempo, já que o seu valor estético e ético não pode ser dissociado de uma visão inconformista do mundo (e que a classe política recubra o assunto com um displicente silêncio, eis uma grande tragédia contemporânea). Porque o realismo não é o “naturalismo” televisivo do grande plano sobre a chaminé do Vaticano: o realismo é a arte, infinitamente complexa e difícil, de lidar com o artifício figurativo sem alienar a verdade da matéria e, no plano humano, a dramática singularidade dos corpos.
No filme Ferrugem e Osso, de Jacques Audiard, o corpo de Marion Cotillard expõe a fascinante tensão que o realismo dos nossos dias pode envolver: por um lado, há nela essa energia táctil que define uma espantosa actriz; por outro lado, a figuração do seu trauma físico (a sua personagem sofre um brutal acidente ao lidar com os animais de um parque temático) só é possível através do uso dos mais modernos e sofisticados efeitos especiais.
Como funciona, então, o realismo? Através de um movimento paradoxal de aproximação e distanciação de que o cinema pode ser a mais radical, e também a mais pudica, das linguagens. Que tudo isso aconteça através do metódico relançamento da sensibilidade do melodrama, eis a proeza de Audiard, cineasta tão tradicional na fidelidade aos géneros populares como heterodoxo na sua ousadia narrativa.