domingo, março 17, 2013

Macau vivido e imaginado

João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata
Em A Última Vez que Vi Macau, descrever e imaginar são tarefas cúmplices. Ou ainda: para os seus realizadores, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, o documentário está do lado da ficção — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (13 Março), com o título “Um documentário sobre um lugar real, mas que só existe no nosso imaginário”.

Como filmar Macau e as suas memórias? Mais do que isso: como filmar o presente de Macau, reencontrando o labirinto das memórias individuais e familiares? A Última Vez que Vi Macau é uma resposta estética e afectiva a tais perguntas. Para os realizadores, João Pedro Rodrigues (JP) e João Rui Guerra da Mata (JR), o projecto envolve a invenção de um território com imagens reais.

Documentário ou ficção? A combinação dos dois registos estava inscrita no projecto desde o início ou resultou do próprio trabalho de preparação?
JP – Penso que foi uma questão que nunca nos interessou, pelo menos do ponto de vista conceptual. O filme começou como um documentário sobre a memória de um lugar, mais do que sobre esse lugar.
JR – Um cruzamento de memórias, a partir da minha infância em Macau (onde nunca tinha voltado até começarmos a filmar em 2010). Tais memórias, como aliás todas as memórias, são uma espécie de ficção. Lembro-me da minha infância em Macau como de um grande filme de aventuras. Sozinho, perdia-me no labirinto das ruas. Continuo a pensar que a melhor maneira de se conhecer uma cidade é perdermo-nos nela...
JP – Eu nunca tinha ido a Macau. Conhecia o território através das histórias que o João Rui me contava: um passado colonial, grutas de piratas, a China "comunista" que ele observava de binóculos do terraço da casa onde vivia... As minhas memórias estavam também povoadas pelo imaginário do cinema americano que tantas vezes reinventou o Extremo Oriente, desde o Macau (1952), de Josef von Sternberg, à História Imortal (1968), de Orson Welles, e também do cinema de Hong-Kong ou até do 007, já que O Homem da Pistola Dourada (1974) foi em parte filmado em Macau.
JR – Quisemos fazer o mesmo, mas ao contrário: inventar um território com imagens reais. Um documentário sobre um lugar real, mas que só existe no nosso imaginário. Uma espécie de vai-vem entre documentário e ficção.
JP – Daí termos tido a liberdade de criar um filme onde também cabem imagens filmadas em Hong Kong, na China e até em Portugal.
JR – Interessou-nos fazer um filme lúdico, com uma liberdade e imaginação quase infantil, como se de uma grande aventura se tratasse.

Até que ponto o reencontro com as memórias individuais envolve também uma revisitação da história portuguesa?
JR – Ao falarmos de um território que teve presença portuguesa durante quase 500 anos e, tendo em conta que vivi em Macau num período em que era oficialmente uma colónia portuguesa, essa questão tinha que estar presente. Mas não achamos que seja o assunto principal. Este filme pode ter várias leituras, está construído por diferentes camadas.
JP – A revisitação da história portuguesa é só uma delas, uma espécie de camada subcutânea.

E a voz off: para que serve? Para informar ou para efabular?
JR – Informar e efabular... Pensámos o som e a imagem como duas bandas separadas, fisicamente separadas como nas cópias de celulóide: umas vezes síncronas, outras vezes não. A ficção nasce também desse desfasamento.
JP – O som é uma espécie de fantasma das imagens: assombra-as e deixa-se assombrar por elas.

Sentem que a percepção do filme numa sala escura será diferente do seu efeito num ecrã de televisão?
JP – Claro que a concentração pedida a um espectador numa sala de cinema é diferente. Até agora, o filme já foi exibido em cerca de 40 festivais em todo o mundo. Essa é a realidade que conhecemos. No entanto, estamos conscientes da importância da televisão.
JR – O filme foi feito a pensar na difusão em salas de cinema. Existe ainda a questão dos filmes que são vistos num computador. Esperamos que o nosso filme possa circular entre os vários meios de difusão. Diferentes espectadores, utilizando diferentes meios de visionamento, terão talvez diferentes percepções, mas isso não nos parece necessariamente negativo.