sexta-feira, março 01, 2013

Audrey Hepburn: o luto digital

É bem verdade que temos sido tocados pelo debate, muito cinematográfico, da digitalização das imagens e da bizarra reconversão do seu respectivo efeito de verdade. Como se pode transfigurar uma imagem? E quando importa transferir a questão das possibilidades de transfiguração para o domínio da legitimidade de intervenção sobre as próprias imagens?
Alguns publicitários (esperemos que não todos) colocam-se decididamente fora desse debate, optando antes por... vender anúncios. Exemplo renovado de tal indiferença é o spot dos chocolates Galaxy que utiliza uma Audrey Heburn digitalmente fabricada [video]. O problema não está tanto na ambivalência figurativa (Hepburn, pura e simplesmente, nunca filmou tal coisa), como no esvaziamento simbólico que assim se favorece. E a utilização da canção Moon River, de um dos mais famosos filmes da actriz (Breakfast at Tiffany's, 1961), apenas acentua o absurdo que pode estar envolvido: haverá espectadores a interpretar a canção como um tema composto para promover... chocolates?
Porquê as dúvidas e o seu pudor? Porque não é possível olhar para esta Audrey Hepburn sem recordar que ela morreu há 20 anos (no dia 20 de Janeiro de 1993, contava 63 anos). Repare-se: não está em discussão o facto de uma estrela (ou seja quem for...) participar numa campanha publicitária — sabemos mesmo que tal envolvimento pode ser uma componente visceral do star system. O que importa reconhecer é que o trabalho de luto que as imagens também envolvem se faz, aqui, à custa de um apagamento forçado da certeza da morte.
Não tenhamos ilusões: este tipo de (re)figurações digitais vai proliferar. E a prudência aconselha evitarmos qualquer generalização precipitada, seja ela conceptual ou valorativa. Em todo o caso, fica um assombramento: o de perdermos qualquer relação com a origem das imagens que, perversamente, não param de se repetir.