sexta-feira, março 29, 2013

As tentações de Martin Scorsese e Peter Gabriel


Entre os créditos do filme há desde logo uma chamada de atenção, sublinhando que a narrativa que ali se apresenta não é baseada nos Evangelhos. É-o, na verdade, centrada em Last Temptation, o “controverso” (porque houve quem assim o entendesse) romance de Nikos Kazantzakis que toma a figura de Cristo como um homem que, como todos nós, tem medos, dúvidas, desejos. Da sua humanização maior e do confronto com as “tentações” que enfrenta acabando até por emergir como uma figura que vence as provações e aceita o seu destino. Afinal, respeitando algo de “canónico”.

Assinado por Martin Scorsese, e com um elenco no qual encontramos figuras como as de Willem Dafoe, David Bowie ou Harvey Keitel, o filme A Última Tentação de Cristo (estreado em 1988) é um dos mais interessantes dos olhares que o cinema lançou sobre figuras e narrativas “bíblicas” após aquele período em que grandes épicos tomaram aqueles tempos, figuras e histórias como tutano narrativo e contextual de produções monumentais.


A banda sonora composta por Peter Gabriel para o filme de Martin Scorsese, editada por alturas da estreia sob o título Passion, é um dos vários argumentos maiores daquele que é um dos títulos mais importantes da filmografia do realizador norte-americano.

Editado na sequência de So, o álbum de 1987 que corresponde ao mais evidente mergulho de Peter Gabriel pelas formas da pop mainstream, Passion é um disco que traduz um marcante ponto de viragem na carreira do músico e representa um episódio de importância maior na história da música criada para o cinema.

Ciente de que se retratava, mais que apenas um tempo, uma geografia concreta, Peter Gabriel centrou a etapa de pesquisa de ideias para a escrita da banda sonora num trabalho intenso de procura de músicas da região que acolheu a vida de Cristo. Na verdade a etapa de recolha transcendeu as fronteiras dessa geografia, tendo Peter Gabriel encontrado estímulos em músicas provenientes do Paquistão, Turquia, Índia, Costa do Marfim, Egito, Senegal ou Marrocos, entre outros lugares. O trabalho começou em 1983, com o desafio lançado então pelo realizador ao músico. Nas notas de uma reedição de Passion, Peter Gabriel recorda que começou por querer saber como iria Scorsese filmar esse “romance controverso” (expressão que ele mesmo usa). E explica que a intenção do realizador era a de “apresentar a luta entre a humanidade e a divindade de Cristo de uma forma poderosa e original” e aceitou o desafio ao entender o empenhamento de Scorsese “no conteúdo espiritual e na mensagem”. Assimiladas e depuradas, as músicas daquela região traduzem na perfeição as intenções do realizador. Juntando contribuições de músicos como Baaba Maal, Youssou N’Dour, Nusrat Fateh Ali Khan, Jon Hassell ou dos Musiciens du Nil, Passion revelar-se-ia mais que uma mera banda sonora. A versão que agora escutamos em disco junta a música que ouvimos no filme a ideias que surgiram numa etapa complementar de trabalho, garantindo ao todo das composições um sentido de coesão que confere ao disco uma unidade maior que o que poderia nascer de uma mera recolha e ordenação de material musical usado no filme.

A importância histórica desta banda sonora não decorre apenas deste labor adidcional, que garantiu a Passion uma identidade de álbum, mas também do facto de ter aberto as bases para uma ligação de Peter Gabriel aos universos da world music, dele fazendo mesmo um dos maiores editores e divulgadores de sons de outras latitudes. Passion, de resto, assinalou a estreia da editora Real World – de Pater Gabriel – que se revelaria uma das forças maiores da edição na área da world music nos anos 90. E surgiu acompanhado por um disco “complementar”, Passion Sources, com algumas gravações reunidas na etapa de pesquisa.