sexta-feira, março 15, 2013

A chaminé mediática do Vaticano

1. Arcaísmo. Num excelente artigo publicado por The Washington Post, Dominic Basulto vê a chaminé do Vaticano (para anunciar a eleição de um novo Papa) como um sintoma das dificuldades de adequação da Igreja católica ao mundo contemporâneo; segundo Basulto, o arcaísmo do processo reflecte a indiferença da Igreja ao facto de "a tecnologia ter alterado para sempre o modo como as organizações e instituições tomam decisões e como as ideias, informações e pensamentos são transmitidos por todo o mundo."

2. Totem. Apesar disso — ou precisamente por causa disso —, torna-se inevitável perguntar porque é que as televisões de todo o mundo transformaram a imagem dessa chaminé numa espécie de totem mediático. Há uma maneira de colocar a questão que, sendo irónica, é também intensamente semiológica e visceralmente ética: porque é que 60 segundos de um plano fixo filmado por Manoel de Oliveira atraem todas as formas de inanidade mental, enquanto 60 minutos da chaminé do Vaticano são valorizados como uma convicta peça de... informação?

3. Linguagem. A expectativa da cor do fumo a sair da chaminé não chega para explicar o fenómeno de linguagem que aqui se consagra. De facto, quando se anuncia a exposição de um quadro de Rembrandt na Fundação Gulbenkian (e aconteceu não há muito tempo), não creio que qualquer canal televisivo tenha gasto mais do que dois ou três segundos para mostrar o objecto (se é que a notícia foi dada...). Mas uma chaminé "à espera" vale mais do que um Rembrandt!

4. Antecipação. Acontece que a informação televisiva (e não só, há que reconhecê-lo) passou a ter na antecipação um dos seus princípios fundamentais de retórica — por vezes, tem-se mesmo a sensação que o acontecimento vale menos que a sua antecipação... Neste caso, o plano fixo da chaminé é concebido como a suprema antecipação, ao mesmo tempo que serve de máscara para o vazio das palavras que vão sendo acumuladas através de uma bizarra noção jornalística e financeira: na esmagadora maioria dos casos, o jornalista diz exactamente o mesmo que poderia dizer, sentado na redacção, em frente a um ecrã; a única adenda é a ideia (?) de que está lá, na zona de onde provêm as imagens.

5. Religião. Em televisão, a concepção do acontecimento envolve uma métrica pueril: é preciso estar a 500 metros da chaminé do Papa ou, de acordo com a mesma lógica, ir para o meio de uma manifestção e ter de gritar muito alto para, contrariando o ruído, fazer reportagem (gritar tornou-se mesmo, por vezes, um código de reportagem). E se o espectador, em casa, pode sentir o mais desencantado cepticismo, o certo é que, no interior da própria máquina televisiva, há sempre alguém que acredita que  semelhante aparato representa um inquestionável acréscimo de verdade — em boa verdade, essa religião mediática acaba por ser o único tema conciso desta forma de entender o directo televisivo.