quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Lincoln, a palavra e a política

Biografia de Abraham Lincoln? Sim, se o gesto biográfico for um processo de pesquisa de significações, não de banal confirmação de sentidos. O Lincoln, de Steven Spielberg, revisita a história à procura das alianças ancestrais entre o exercício da política e o poder da palavra. Raras vezes assistimos a semelhante fulgurância — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 janeiro), com o título 'O valor político da palavra'.

Hoje em dia, por obra e graça de uma trágica ligeireza intelectual ou por acção dos conselheiros para a “comunicação”, muitos políticos vivem angustiados pela imagem que produzem. Que imagem temos? Que imagem devemos construir? Que imagem vai nascer desta ou daquela acção?... O filme Lincoln não é para tais políticos (até porque, para a maior parte deles, a visão pueril da imagem revela uma apoteótica ausência de cultura cinematográfica): apoiado num prodigioso argumento escrito por Tony Kushner, Steven Spielberg encena o trabalho político como um elaborado e complexo exercício da palavra. Das palavras.
A questão transcende o poder retórico que as palavras podem envolver. Em boa verdade, o Lincoln de Spielberg é uma personagem que sabe que o desígnio de libertar os escravos e pôr fim à escravatura só se decidirá no plano militar e económico se, em conjugação com muitas outras acções, começar a haver palavras para lidar com o novo contexto que se quer construir. Daí que este seja um filme, literalmente, sobre a letra da Lei. Daí também o valor essencial da voz, misto de certeza e vulnerabilidade, com que o genial Daniel Day-Lewis compõe o “seu” Abraham Lincoln.
Entre os muitos momentos emblemáticos de tão prodigioso filme, registe-se o diálogo de Lincoln com Mrs. Keckley (Gloria Reuben), escrava libertada e camareira de Mary Todd Lincoln (Sally Field). Ao ouvir as memórias do efeito devastador da escravatura na família de Keckley, Lincoln pergunta-lhe se já pensou como vai ser a vida dos milhares que estão à beira de ser libertados. Ela confessa “não saber”. Na angústia com que o diz perpassa o sentido mais utópico que a política pode envolver, abrindo hipóteses de vida para as quais, afinal, ainda nos faltam as palavras.